YUNO YUNO
É uma constatação estranha que tem tomado forma. Se me perguntarem no futuro, direi que nunca fiz tal afirmação. É possível até mesmo que esse texto exploda automaticamente antes de chegar a qualquer conclusão lógica. Mas a verdade é que... a Yuno de Mirai Nikki é mais moe do que a Yuno de Hidamari Sketch! Você não pode contar esse segredo a ninguém.
Embora o consenso geral muitas vezes pareça se dividir entre amar e odiar o moe, esse é, na verdade, um conceito surpreendentemente complexo e abstrato. Por se tratar de um sentimento que pode envolver até mesmo identidade e representação em mídias visuais, o moe é algo profundamente subjetivo. Então, para transformar isso em algo palpável, a influência do moe, da euforia em torno de gostar de personagens da ficção, se desenvolveu em torno do que se pode chamar de estética moe: um conjunto de características visuais e narrativas que giram ao redor de personagens nos animes, mangás, visual novels, light novels e outras mídias populares no Japão em prol de torná-las agradáveis e relacionáveis, o que muitas vezes pode resultar em fanservice e idealização, e outras vezes em algo mais palpável e relacionável com a complexidade da vida real.
Mesmo que essa estética não seja o que é originalmente entendido como moe, pode-se dizer, pelo menos, que é a evolução comercial do moe. Devido a essa ligação com os hábitos de consumo, muitas problemáticas são atribuídas ao moe. Coisas como o hiperfoco das histórias nas personagens em detrimento da narrativa; a objetificação do feminino; os estereótipos; o olhar masculino sobre tudo; ou até mesmo a ascensão da pornografia lolicon. De fato, tudo isso está originalmente ligado ao moe, mas não adianta atacar um conceito por algo que é muito mais complexo socialmente. Ainda mais equivocado é achar que obras que não pareçam flertar com o moe são inerentemente positivas. Obviamente, a natureza dessas discussões é válida e até saudável para o mercado se tornar algo melhor e mais acessível para todos os públicos. Tudo isso será mencionado nesse post, mas não necessariamente atribuído ao significado de moe. Quem realmente molda e muda a economia e a cultura são as pessoas, e não os conceitos.
E então, eu reparei que, mesmo que Hidamari Sketch tenha muitos dos elementos que se entendem como estética moe e seja uma das obras mais fofas já feitas, a Yuno (doravante Yunocchi) está mais distante da raiz do moe do que a Yuno de Mirai Nikki. Esse é o ponto de partida para tentar entender o que pode ser o moe e perceber que existem variadas formas de apropriação da ideia. Yuno e Yunocchi são dois ótimos exemplos de como a forma que as pessoas entendem o moe e a forma como as pessoas sentem o moe podem ser diferentes umas das outras, sem estarem em desacordo.
Tentando Encontrar a Origem do Moe
Nem de longe moe é um fenômeno recente. Embora o léxico da palavra só tenha sido cunhado quando os fóruns e chats da internet japonesa se tornaram relativamente populares, algo muito semelhante ao conceito já existia há pelo menos 80 anos. Assim como sua popularização, a ideia do que viria a ser o moe nasceu e se desenvolveu pela visão social em uma época de grande crescimento do mangá como mídia e ganhou forma ao longo do tempo. Segundo Helen McCarthy, autora britânica considerada referência sobre temas que envolvem anime, existem muitas semelhanças entre os animangás contemporâneos e as obras de Osamu Tezuka no pós-guerra.
Em entrevista a Patrick Galbraith para o livro "The Moé Manifesto: An Insider's Look at the Worlds of Manga, Anime, and Gaming", Helen McCarthy esclarece como uma das primeiras obras do deus do mangá, Lost World, já trazia a ideia do sentimento moe. A história da obra apresentava um jovem cientista em um mundo alienígena chamado Mamango, onde ele inventou um método genético que conseguia desenvolver uma nova espécie de fêmea humanoide a partir de material vegetal. Outro cientista no planeta faz amizade com uma das mulheres-planta, Ayame. Mais tarde, os dois ficam presos no mundo alienígena e decidem viver como "irmão e irmã". O tipo de sentimento que Ayame poderia despertar no leitor médio é o que Helen McCarthy definiu como a essência do moe.
Lost World faz parte da primeira trilogia sci-fi do Tezuka e é um dos mangás mais importantes da história. Desempenhou forte influência na concepção inicial do mangá na forma pela qual viria a ser amplamente reconhecida. Uma figura proeminente que foi diretamente influenciada pelo trabalho de Tezuka foi o lendário Azuma Hideo. Mencionado em diversos livros e estudos sobre moe, Hideo foi o responsável por popularizar a estética pela qual o moe ficaria marcado. Ao combinar os traços arredondados do deus do mangá com a expressividade marcante do shoujo, Hideo marcou época com sua estética bishoujo, que era voltada, principalmente, para ressaltar a beleza feminina por meio da juventude.
Além da forte influência na popularidade do bishoujo e do moe moderno, Azuma Hideo também é considerado pai do lolicon. Por isso sempre surge essa associação direta entre lolicon, seja como pornografia ou representação narrativa, e o moe, mesmo que, conceitualmente, ambos tenham surgido em momentos diferentes. O mangaká é constantemente citado em livros sobre moe, bishoujo ou lolicon. Artigos especializados da época destacam como a influência do bishoujo se desenvolveu em narrativas que priorizam os personagens em detrimento das histórias. Havia até mesmo críticas a clássicos atemporais - como as séries Mobile Suit Gundam e Macross - sobre esse ponto. Jornalistas e fãs de ficção científica inicialmente não receberam bem tais obras, devido ao seu caráter de apelo melodramático aos personagens, seguindo a tendência comercial da época. Apesar de certa resistência, toda essa estética consolidou os animes como produtos mercadológicos. Muitos animes adaptados ou originais dos próximos anos eram baseados na perspectiva de vendas de materiais e brinquedos, como Princess Minky Momo ou o próprio Gundam.
Os elementos do moe se tornaram cada vez mais populares e globalizados, até tomarem a forma que conhecemos hoje em dia. Mesmo obras cult como os filmes do renomado Estúdio Ghibli usam bastante a estética bishoujo e tramas melodramáticas centradas nas personagens. Então, apesar de não existir um evento que possa ser considerado como o nascimento do moe, a análise de Helen McCarthy sobre Lost World e a influência de Osamu Tezuka estão realmente próximas de uma direção lógica para entender a influência do moe na história dos animes, mangás e afins.
O Moe Como Identidade nas Obras de Tezuka
A guerra como tema, alertas sobre o abuso de conhecimento, críticas à corrida armamentista nuclear e outros temas relacionados à guerra permeiam as obras de Osamu Tezuka. O elemento mais importante para esta dissertação, e que está diretamente ligado ao moe, é a representação de força dos seus protagonistas. Os heróis das histórias de Tezuka geralmente não eram pessoas fisicamente fortes, nem super-heróis com nervos de aço. Mesmo um de seus personagens mais influentes, Astro Boy (Tetsuwan Atom), era mais como um garoto órfão que se sentia solitário do que um robô com habilidades sobre-humanas. Astro Boy representava a visão e a miséria de muitos órfãos de guerra que eram marginalizados no Japão da época em que o mangá começou a ser publicado (1952).
Suas obras tinham protagonistas que refletiam como Tezuka dizia se sentir em sua participação na Segunda Guerra Mundial e sua motivação para criar mangás. Tezuka explicou certa vez que sempre sentiu uma forte vitalidade no movimento das formas em mangás e animações, e que, em certa medida, isso se devia ao fato de sua própria vida durante a guerra ter sido completamente desprovida de vitalidade. Ao aplicar esse sentimento em seus desenhos, num período em que a memória da guerra ainda era vívida, as obras de Tezuka encontravam respaldo em muitas pessoas que se sentiam desconfortáveis com os padrões estabelecidos de postura, de conhecimento e de atitude durante o pós-guerra. Então, no mangá Lost World, apontado por Helen McCarthy como o 'moe essencial', o personagem em questão apresentava essa visão sobre a crise de masculinidade, mostrando um nerd sem muita força física que encontrava conforto e aceitação em Ayame, a mulher-planta com quem ele terminou vivendo uma relação fraternal. Ao ser idealizada e ir contra a cultura da década, assim como outras personagens femininas de Tezuka, os sentimentos que Ayame despertava nos leitores eram basicamente os mesmos que entendemos como moe atualmente, mesmo que ainda não se consiga explicar claramente o que é esse tal sentimento.
O Moe do Passado em Mirai Nikki
Mas o moe extremamente presente na Yuno está para além da lacuna entre sua personalidade distorcida e seus breves momentos de ternura. Yuno está realmente muito próxima de representar a mesma coisa que Ayame representava em Lost World: Uma garota que pode amar incondicionalmente o seu par romântico, mesmo que ele seja completamente desprovido de aptidões sociais.
Logo de início, Mirai Nikki nos empurra para o vórtex de apatia emocional de Yukiteru Amano, um garoto desconfortável com tudo ao seu redor. Envolvido em um jogo psicológico de sobrevivência por meio de diários com habilidades especiais, Yukiteru encontra na paixão obsessiva de Yuno Gasai uma forte aliada, cuja obsessão ele usa para garantir sua sobrevivência, enquanto descarta a culpa pelos assassinatos de inocentes cometidos por ela em seu favor.
Embora o transtorno de personalidade antissocial de Yukiteru seja tão distorcido quanto o de Yuno, é ela quem sempre lhe oferece amor incondicional e a única vista como psicopata. Yukiteru é, narrativamente, pouco mais que uma alavanca para tornar a loucura e carisma avassaladores de Yuno em forças à parte na obra, validando-a mais como um estereótipo do que como uma pessoa. Enquanto isso, a recíproca não se faz verdadeira. Yuno é constantemente usada para justificar o estado mental de Yukiteru e dar sentido às ações do garoto. Mesmo que o léxico de "yandere (ヤンデレ)" venha de "yanderu (病んでる)", que literalmente se refere a um transtorno mental, a violência desmedida de Yuno não é representada ou justificada como algo além de um distúrbio gerado pelo seu passado obscuro que só é inteiramente revelado nos últimos episódios.
Por isso, a própria trama reforça que o moe, que é a força motriz de Yuno, não está em seu "yanderu", em sua loucura, mas sim em seu "dere", na sua inegável devoção por um garoto fraco e apático. Isso tornou Yuno não apenas a yandere mais popular, mas também um ícone na cultura otaku. Apesar da violência extrema, é fácil sentir o apelo afetivo de Yuno por meio do fanservice, mesmo sem que o público necessariamente se identifique diretamente com ela.
Honestamente, foi bastante interessante rever Mirai Nikki sob essa ótica. É idealizado, é romantizado, é raso, não é abrangente, mas é, sem dúvida, um ponto interessante para tentar compreender o que significa sentir o moe, seja como uma problemática ou mesmo um forte elemento narrativo. Yuno é um tipo de personagem que, embora gere certa repulsa pelo medo, tem um tipo de atratividade incomum que consegue me manter atento à obra. É como se ela fosse o elemento mais importante da narrativa.
Experimentando Pessoalmente o Moe com Hidamari Sketch
O aspecto mais amplo da diversidade está no moe como uma forma de representação de personalidade e identidade. Uma quase unanimidade entre os artigos sobre o tema é que as pessoas que buscam o moe em mídias de entretenimento querem mais do que apenas gostar de personagens; querem se sentir como as personagens, fazendo o moe passar de um sentimento para algo sensorial. Conta a história que a palavra de origem do moe, moeru (燃える), significava "queimar", mas os computadores frequentemente convertiam isso de forma incorreta para o verbo homônimo moeru (萌える), que significa "brotar", como a palavra veio a ficar conhecida.
O moe, principalmente na forma como evoluiu, está diretamente ligado aos elementos cotidianos. Com isso, os relacionamentos humanos tendem a se tornar mais importantes do que a própria narrativa, ao ponto de muitas obras como Lucky☆Star sequer se preocuparem em contar uma história. Por isso, animes do gênero slice of life, que representam o dia a dia, passaram a ser o estandarte do moe, pois fantasiam a realidade comum às pessoas. Assim, o moe se torna uma via mais acessível para formas de representação ainda pouco exploradas nos animes em geral. Por exemplo, é muito fácil encontrar textos escritos por pessoas que conseguem se identificar com representações de neurodivergência através destas obras com foco no cotidiano.
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Artigos: animefeminist.com |
Essa lógica de identificação é válida em diversos outros aspectos. Embora claramente exista um grave déficit de representações mais naturais e menos codificadas, uma ambientação com foco nos elementos humanos e mundanos gera um sentimento de aproximação e afeto verdadeiro relacionados aos personagens. Esse sentimento em si, apesar de não ter uma forma definida, é uma das formas mais evidentes em que se entende o moe.
Em Hidamari Sketch, a arte é um meio de entender o mundo, por isso o título se refere tanto ao apartamento onde as meninas vivem (o Hidamari-sou) quanto aos esboços artísticos. Enquanto estudam arte, o cotidiano que vivem fornece experiências valiosas para uma vida plena. Para a personagem do título desse post, Yunocchi, a arte é uma maneira de compreender todas as coisas ao seu redor, uma expansão de sua própria realidade, uma lente para perceber o conforto do mundo.
Algumas vezes isso é representado de forma literal, como quando Yunocchi tem febre e sonha o cotidiano com sua criatividade febril descontrolada, ou quando as pessoas interpretam de maneira positiva o desenho incompleto de Yunocchi, mas ela guarda essa frustração consigo até o ano seguinte e transforma essa experiência em motivação para vencer o concurso do cartaz do festival escolar com uma ilustração que expressava sua vivência do evento.
Como se trata de uma obra da SHAFT com forte participação do diretor Akiyuki Shinbo, a expressão artística da produção também está presente nos cenários do Hidamari-sou. Muitos objetos cênicos são realistas e contrastam diretamente com o desenho das personagens. No entanto, isso é percebido como arte não por elas, mas sim pelo espectador. Há também várias marcações de roteiro e indicações de cortes de cena integradas intencionalmente aos cenários, elementos que, para as personagens, são naturais, mas que para o espectador revelam a própria estrutura artística da produção e sua rotina criativa.
Dessa forma, o cotidiano é tudo em Hidamari Sketch, desde o início dos episódios, quase sempre com Yunocchi acordando, até o encerramento, com ela tomando banho em sua banheira relembrando o dia. A rotina normal se repete constantemente. Subir escada, descer escada, comer, dormir, fazer compras, conversar bobagens, ir à escola, etc. Porém, a forma como tudo é retratado de maneiras sempre diferentes faz parecer como se a vida e arte fossem uma coisa só. Como se a produção fosse parte da narrativa e o espectador parte da rotina.
Yunocchi é uma personagem pela qual sinto forte ligação e empatia. Ela é visivelmente muito tímida, mas isso não é um problema em sua vida e em seus relacionamentos. Yunocchi está em um ambiente em que se sente confortável em ser tímida e pode se expressar artisticamente independentemente disso. O Hidamari-sou é para ela o que o Animelancolia é para mim. A timidez dela é a minha timidez.
Cada Yuno me faz compreender o moe de um jeito diferente. Assim como percebo o fascínio que Yuno exerce ao amar um garoto que parece desconectado do mundo, de forma que consigo relacionar ao que eu mesmo sentia durante toda a minha infância, sinto ainda mais o apelo da Yunocchi por expressar a timidez exatamente do jeito que sempre imaginei ser, como um privilégio.
Embora tão abstrato quanto qualquer outro sentimento, o moe pelos personagens pode ser sentido de diversas formas, seja de maneira direta, como em Hidamari Sketch, ou de forma indireta, como em Mirai Nikki. Muitos outros aspectos estão relacionados ao moe, mas o conceito em si não é inerentemente negativo nem positivo. Depende da forma como cada pessoa o entende, como é expresso em cada história e como a ideia é usada na criação das obras. As coisas ao redor do moe são complexas, mas a forma de entender o moe é basicamente sentindo-o. É um conceito suficientemente abrangente para estar em qualquer obra, na verdade. Se você se sente feliz de gostar de personagens, de sentir empatia, apego ou admiração por eles, parabéns, você entendeu o que é moe.
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Texto escrito por: Maviael Nascimento, pensando nessas coisas do oriente, romances astrais.
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