O Ar que Sustenta os Pássaros no Céu



 Um dos momentos mais importantes de 3-gatsu no Lion:

 A cena acima demonstra muito da capacidade de produção aplicada ao anime, e solidamente carrega sua excelência técnica. A direção criativa em cada mínimo elemento, como a ausência de trilha sonora durante todo o discurso da Hina; as escolhas de 'ângulos de câmeras'; as cores; os elementos de cenário; a atuação de voz da Hina, carregando e misturando um turbilhão de sentimentos diferentes; e a própria animação em si. No entanto, existe uma única coisa, uma simples linha de diálogo que carrega toda uma abstração própria, em que se faz necessária uma interpretação muito mais profunda para entender o que tal pensamento diz sobre a obra e seus personagens.

"Você é aquela que salvou a minha vida."

 Afinal, o que o Rei quis dizer com isso? Para realmente tentar interpretar essa fala do Rei, é preciso ir ao fundo da essência de 3-gatsu no Lion, desde os mais primários de seus temas, até o ponto zero da psique do Rei Kiriyama. E nesse princípio está, é claro, o shogi.






Pássaros canibais


 Antes de entender o que a perspectiva do Rei pode nos passar sobre o arco do bullying, e o que a saga da Hina e da Chiho tem a dizer sobre Rei, é necessário entender o elo existencial entre Rei e o shogi. Entre tantas coisas que poderiam ser ditas sobre como os ideais desse jogo de tabuleiro descrevem perfeitamente o ser chamado de Rei Kiriyama, e que poderiam facilmente criar um post à parte, quero focar apenas nos pontos que envolvem a percepção humana.

 O primeiro ponto é que o shogi é uma competição individual. Embora sempre exista um oponente à sua frente, o mais necessário é focar sempre em si mesmo. Assim como o Rei que, por mais que suas decisões sempre afetem mais pessoas, no fim, a decisão é sempre centrada nele. Quando o avanço das habilidades de Rei no shogi começou a causar o que ele entendeu como um ponto de ruptura na família Kouda, a saída que Rei encontrou para amenizar esse problema foi simplesmente abandonar o seio daquela mesma família. Se formos mais a fundo na percepção do Rei nesse drama dos Kouda e em todos os problemas de oponentes dele aos quais ele acabou se envolvendo, era como se alguém sempre tivesse que ser devorado pela individualidade do shogi. Um jogo sobre encarar de frente as perdas.

 Por isso, no início da história de 3-gatsu, Rei se convenceu com a mentira de que ele não se importava em ganhar ou perder. Essa mentira sobre a visão cruel do shogi, retrata uma das características de personagens mais gritantes do Rei; a sua conduta de buscar escapismo. Rei Kiriyama constantemente evita a consciência de sua própria dor e do sofrimento que ele mesmo pode causar. Isso se manifesta tanto em coisas menores, quanto até mesmo no fato de ele conseguir sufocar as lembranças de seus parentes mortos.

 O segundo ponto do shogi para entender Rei, está no fator analítico do jogo. No shogi profissional, mais que o autofoco, também é necessário ter uma noção exata de si mesmo. O nível total de sua própria habilidade, suas fraquezas e suas possibilidades ante cada adversário. Parte do estudo do shogi é entender-se, compreender a força do adversário, e encarar a lacuna entre as duas coisas. Por isso, jogadores profissionais dedicam suas vidas em estudar páginas e mais páginas de registros de partidas. E ainda assim, mesmo tentando ao extremo compreender a força do oponente, é necessário sempre encarar a si mesmo, encarar seu próprio limite de frente. A métrica mais cruel de si mesmo. A única forma de superar oponentes mais fortes é superando a si mesmo. Mas o próprio shogi sempre parece deixar claro que há um limite. Então, como superar isso e continuar seguindo em frente? Isso é o que todos os jogadores de shogi em 3-gatsu estão desesperadamente tentando entender.

 Este segundo ponto se apresenta no Rei como a visão negativa que ele tem de si mesmo. A imersão total que ele dedica aos seus problemas acaba limitando a visão dele diversas vezes. Se encarar como se olhasse em um espelho é algo completamente confuso no Rei. Algumas vezes ele se anula, outras vezes ele se infla como um balão, colocando-se no centro de tudo. Rei tem a dualidade de querer escapar das próprias dores, ao mesmo tempo em que precisa sempre olhar profundamente dentro de si.


Zero Absoluto

 Mesmo na cena que iniciou esse texto, Rei percebeu algo sobre si mesmo enquanto ouvia Hina, que é uma segunda pessoa, chorando pelas consequências de ter defendido a amiga, uma terceira pessoa.

 Sim, a personalidade de Rei Kiriyama tem tendência ao egocentrismo. 

 Principalmente durante a primeira temporada do anime, é evidente em várias cenas a tendência do Rei de se concentrar excessivamente em seu próprio ego. Isso fica especialmente claro na cena em que ele deseja enfrentar o Gotou na final do Torneio do Rei Leão, chegando ao ponto de esquecer completamente de analisar as partidas do Smith e considerar o Kai Shimada, um jogador rank A, apenas como um mero coadjuvante. Na maioria das vezes, ele age assim de forma inconsciente, o que mostra o quão profundamente enraizado esse comportamento está nele e, através dos flashbacks, é notável como ele sempre foi assim. Antes de entender se isso é uma falha no caráter de Rei, é necessário notar como a pessoa que mais se fere com isso é o próprio Rei.



 No início do episódio de estreia de 3-gatsu no Lion, somos apresentados a uma cena muito longa e inicialmente pouco significativa. Vemos um garoto, Rei, acordando em um apartamento aparentemente muito grande para uma pessoa viver sozinha. Ele bebe água apenas para se hidratar, come macarrão instantâneo apenas para se alimentar e então vai para algum lugar sem prestar muita atenção ao cenário que o rodeia. Uma existência quase onírica onde cada coisa existe apenas para cumprir sua função.

 Embora à primeira vista essa cena pareça despida de qualquer necessidade de interpretação além da solidão expressada e de uma possível depressão caracterizada pela metáfora da água, em uma revisita à obra, essa mesma cena torna-se incrível com o quão arreigada de significados ela está. É uma cena que demonstra o tipo de vida que o Rei leva e continuaria vivendo até o fim se ele não tivesse conhecido a família Kawamoto. Uma vida em que nada é feito por prazer, em que mesmo beber água, comer, dormir e estudar servem apenas para cessar necessidades básicas. Alguém completamente afundado dentro de sua própria solidão, vivendo fechado dentro de si mesmo.


O arco do bullying

 Algo importante no arco do bullying em 3-gatsu no Lion é o fato de a narrativa mostrar diversas perspectivas diferentes em torno do tema. Temos desde o ponto de vista das vítimas dessa prática, Hina e Chiho, até a principal pessoa que causou essa agressão, Megumi. Mas também das famílias dos envolvidos, dos colegas de classe e do corpo docente, apresentando fatos e conclusões sobre o bullying. Uma narrativa completa e, ainda assim, totalmente oposta à visão geralmente limitada que Rei tem sobre muitas coisas. Durante o arco, mesmo que seja mostrada uma bagunça de percepções diferentes partindo de pessoas diferentes, todos os olhares estão inclinados para Chiho e Hina.

 A situação de bullying apresentada nessa história é tão pesada que fez uma garota mudar de cidade e até mesmo uma professora desmaiar de esgotamento. E no meio da algo tão grave, uma criança interveio, não por si mesma, mas sim para ajudar sua amiga. Não existe outra forma de pensar em Hina senão como uma alma incrivelmente altruísta. Alguém tão jovem que fez algo que mesmo a maioria dos adultos não teria coragem de fazer. Mesmo com os avisos que o Bullying sofrido por Chiho poderia se voltar contra ela, Hina não se calou diante da escuridão que começou a dominar aquela sala de aula. E, mesmo quando a situação de fato a afetou de maneira tenebrosa, Hina não conseguia se arrepender, pois, em suas próprias palavras, o que ela fez definitivamente não foi errado.

 Embora todos esses parágrafos acima possam fazer parecer que Rei Kiriyama e Hinata Kawamoto tenham personalidades opostas, isso não é verdade. Naturalmente, Hina carrega um tipo de altruísmo do qual Rei jamais poderia ter. É algo inerente às formas como cada um viveu. Isso não significa, no entanto, que Rei seja uma má pessoa. Exceto por algumas vezes em que o egocentrismo dele é realmente alguma forma de arrogância ou autoconfiança em demasia (que ao fim é algo necessário pra se sobreviver no mundo do shogi profissional, segundo o próprio Kai Shimada), normalmente esse traço de personalidade dele é como uma cicatriz permanente das coisas que aconteceram em sua vida. Não existe nenhum momento em que Rei propositalmente cause o mal a alguém. Mesmo nas partidas de shogi, onde a vitória dele por vezes significa infligir dano psicológico à outra pessoa, é apenas uma consequência do jogo, e nunca algo que ele faz por maldade.

Ao longo do anime existem três momentos onde Rei desejou causar sofrimento em alguém. Quando ele tentou bater no Gouda pra defender a Kyouko, quando ele enfrentou o Yamazaki após perceber que este prolongou à partida contra o Nikaidou até ele desmaiar devido à sua doença, e também, ver Hina chorar fez Rei querer fazer com que as agressoras pagassem por isso em suas próprias peles. Em todas essas ocasiões ele quis algo vil assim após sentir dor por outro alguém. Mesmo que nesse conto não faltem momentos em que Rei foi machucado, excluído e sofrido violência psicológica e até física, ele só sentiu ódio verdadeiro quando viu alguém importante em sua vida sofrer. Essa é a maneira confusa em que a personalidade altruísta dele aparece. Embora a personalidade de Rei seja bastante complexa, ele é genuinamente um bom garoto.

 Assim como as duas garotas, Rei também sofreu bullying em sua infância. Por isso, Hina, Chiho e também Rei, carregam, cada um, uma visão subjetiva de formas de lidar com essa prática de abuso. A Chiho, por algum tempo, tentou acatar o que suas agressoras diziam na vã esperança de que isso amenizasse a situação. Quando tudo se agravou ao ponto em que ela estava sendo açoitada e com suas segurança física comprometida, Chiho mudou de escola.

 A situação de Rei foi algo semelhante. Ao invés de procurar ajuda de um adulto, o que, na imaginação dele, o faria se destacar de uma maneira que ele odiaria, Rei optou apenas por se esconder e apagar tanto sua própria presença que ele já quase não era mais notado. De certa forma, isso o fez parar de sofrer escárnio, o que, em teoria, amenizou seu sofrimento com o bullying. No entanto, fica claro que essa não foi uma boa opção para ele. Mesmo que ele tenha parado de ser ofendido, o preço que ele pagou foi ser ignorado, vivenciar solidão e passar toda sua vida escolar completamente sozinho, algo que claramente ressoou na vida e moldou a personalidade dele como um todo.

 Já Hina foi alguém que conseguiu lidar com essa situação até que fosse inteiramente resolvida. Ela não apenas não desistiu de frequentar a escola, como ela também não quis ser deixada sozinha, e também nunca se rebaixou à ameaça silenciosa e obscura da Megumi e suas amigas.

 Isso não significa que Hina tenha uma coragem inabalável. Durante esse tempo em que tudo se voltou contra ela, a pequena garota sofreu tanto que fez até com que seu corpo reagisse, causando sangramento nasal e dores na barriga. Depois que sua preciosa amiga foi embora, de ser afastada dos colegas que tinham medo da situação e de não conseguir contar com a ajuda dos professores, Hina ficou com pavor por ficar sozinha, e isso a fez chorar muitas e muitas vezes. Se ela não tivesse recebido tanto apoio e amor de seus familiares, não é possível ter certeza se ela teria conseguido seguir em frente, já que, mesmo com esse apoio, ainda é uma situação assustadora. E uma dessas pessoas que lhe deu total apoio, foi o Rei. Ele a escutou, dedicou tempo pra ela, a consolou quando ela precisava chorar, ele até mesmo foi procurar pela Hina em outra cidade quando sabia o quão solitária ela deveria estar. Sem isso ela talvez não tivesse suportado, pois Hina não é uma super-humana, ela é apenas uma humana.

 Essa é uma perspectiva subjetiva e não representa a interpretação definitiva de 3-gatsu no Lion, no entanto, o meu entendimento sobre o que o Rei quis dizer com a frase que iniciou esse texto, é algo que parte por essa linha de pensamento, relacionado à atuação da Hina no caso de bullying da Chiho, que fez com que ele entendesse algo importante sobre o bullying que ele mesmo sofreu.

 Quando Hina diz que não se arrepende de nada porque o que ela fez estava correto, Rei conseguiu completar o pensamento sobre o que o incomodava em relação às escolhas de seu passado. Lembro de uma certa cena em que o Takahashi pergunta a Rei o que o fez voltar à escola depois de um ano. Rei responde que ele não queria ter o sentimento de estar fugindo, mas, mesmo dizendo isso, fica evidente em muitos momentos que ele se arrepende de algumas de suas escolhas e das consequências que isso causou em sua vida.

 Rei jamais quis estar sozinho. Todo esse tempo ele desejava ser necessário para alguém. Mas tudo que ele fez o deixou cada vez mais solitário. Quando Rei ouviu todo o discurso de Hina, ele não apenas percebeu algo sobre si mesmo, mas também enfrentou um dos medos aos quais ele evita recordar. No entanto, por evitar refletir sobre isso, nunca ocorreu a ele que não tinha motivo pra se arrepender do que fez quando sofreu bullying.

 Ao segurar a mão da Hina, é como se ele também aceitasse que ela lhe dê a mão, e então o 'eu' do passado do Rei também pode segurar a mão da Hina e continuar seguindo em frente. Por isso, de certa forma, Hina realmente salvou a vida dele ao fazê-lo compreender que o que aconteceu com ele, mesmo que o tenha ferido profundamente, não é culpa dele, que ele não fez nada de errado e que ele não fugiu, apenas se protegeu.

 Entender o que é o egocentrismo no Rei não é algo simples. Quando o discurso da Hina lhe traz sentimento de salvação, esse não é um dos momentos em que seu ego estava inflado. Pelo contrário, foi um momento em que ele experimentou empatia genuína. Ele estendeu a mão para Hina sem qualquer intenção oculta. Mesmo que os sentimentos dos dois sejam distintos, Rei aceita que ela o tenha salvo, e quer fazer o mesmo por ela.

 Ao invés de um ponto de virada, a cena que começou esse texto é, na verdade, um ponto de início na história de Rei. A Hina fez ele mudar muita coisa pra melhor. A personalidade dele, no entanto, não se tornou o oposto do que era. Rei ainda tem dificuldade de entender o próximo, e ainda continua evitando pensar sobre as lembranças que prefere manter fechadas. Durante o arco do bullying ele fez muito bem para a família Kawamoto, sem sequer perceber a importância disso. O que muda em Rei desse ponto em diante é que, mesmo que seja difícil e confuso, ele consegue pensar nas pessoas importantes para ele e em si mesmo antes de agir impulsivamente. Cuidar de si mesmo não é nenhuma forma de egocentrismo. É quando enfim Rei consegue enxergar sua a vida e sua história em primeira pessoa. Ele é alguém. Ele tem alguém. Ele é necessário para outras pessoas, que são igualmente necessárias para ele. Rei Kiriyama não é mais uma pessoa que apenas assiste essa história. O arco do bullying marca o começo de sua jornada ao dizer "adeus, espectador".


Procurar um ninho

 Embora essas interpretações sejam subjetivas e não representem uma verdade absoluta, existe, de fato, conclusões que posso alcançar por causa da narrativa desse arco. Depois de tudo, 3-gatsu no Lion também é uma conversa entre a Chika Umino, autora da obra, e o telespectador do anime. Se ela quis abordar o bullying de uma forma tão humana, mostrando todas as perspectivas, certamente há algo que ela deseja que compreendamos. O bullying vivenciado na infância é, sem dúvidas, um tema muito delicado em que qualquer ideia errada pode gerar uma compreensão equivocada. Por isso que as perspectivas da Hina e Chiho são importantes. E também é importante o ponto de vista da Akari, dos professores e até mesmo da Megumi, que sim, era a pessoa que realmente agia de acordo com seu egoísmo e medo. Todas essas visões se complementam e nos permite chegar a inúmeras conclusões.

 A história de 3-gatsu no Lion não se resume a uma simples e bela frase feita que diz para nunca desistirmos. A jornada de Rei, Hina, Chiho e de todos os outros personagens, é sobre continuar fazendo nosso melhor, mesmo diante de nossas fraquezas e imperfeições. Desistir, ser egoísta e enfrentar nossas perdas não são apenas elementos do shogi, mas sim da vida em todas as suas esferas.

 Existe algo que se torna muito mais compreensível a partir da narrativa do Rei. Nesse arco em que vemos os pensamentos de três pessoas diferentes que foram vítimas de bullying e agiram de maneiras distintas, a Hina foi a única que enfrentou sua agressora, no entanto, a perspectiva única do Rei nos mostra que tanto ele quanto a Chiho não estavam fugindo. Covardia não é uma característica que deve ser negligentemente atribuída a quem foi vítima de bullying. Ser frágil não é o mesmo que ser fraco e se resguardar não é o mesmo que fugir. A verdadeira covardia reside em outro lugar em situações desse tipo. Hina, Chiho e Rei, nenhum dos três jamais esteve errado em suas ações. 

 É necessário um certo cuidado ao querer atribuir sentimentos de força e fraqueza às pessoas. Mesmo para quem olha de dentro, entender esses aspectos em si mesmo não é algo simples. É um fato que não existe uma solução concreta para o bullying, mas é sempre importante compreender o ponto de vista das vítimas, pois existem maneiras corretas e incorretas de apoiá-las. Entender que todo ser humano é complexo por natureza. O valor das ações de Hina em relação à Chiho e de Rei em relação à Hina não reside necessariamente em torná-los mais fortes ou não. O valor concreto está na verdadeira empatia presente em várias perspectivas ao longo dessa bela história, pois é esse tipo de empatia que pode mudar o mundo. Talvez não o mundo, mas pelo menos as pessoas.




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Texto escrito por: Maviael Nascimento, escutando as músicas da YUKI em looping ad aeternum.

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