NHK ni Youkoso! - Ensaio Sobre a Empatia



 Tenho um amigo que é fanático pelo mangá de NHK ni Yokouso!. Certa vez perguntei a esse meu amigo o motivo pra ele gostar tanto de uma obra que carrega um humor tão depressivo. Em sua criativa e longa resposta, uma palavra se repetia constantemente em forma de argumento. Empatia era a palavra. Para ele, a experiência do mangá era mais do que compreensão dos sentimentos dos personagens, se tratava de identificação. Segundo ele, a obra o fazia se projetar nos personagens. Projetar os personagens em si mesmo. Esse sentimento é exatamente como o dicionário descreve a empatia:

empatia.

substantivo feminino

"Capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa, buscando agir ou pensar da forma como ela pensaria ou agiria; compreensão."

[Psicologia] "Identificação de um sujeito com outro; quando alguém, através de suas próprias especulações ou sensações, se coloca no lugar de outra pessoa, tentando entendê-la."


 Seria a empatia um sentimento ou uma habilidade, afinal? Quando passamos isso para a ficção, precisaríamos de ainda mais palavras pra entender como a empatia se manifesta. E então, resolvi ler NHK ni Yokouso! prestando atenção no que uma obra centrada em um hikkikomori teria a dizer sobre empatia. Para minha surpresa, a obra tem muito a dizer sobre o tema.

isso é sobre empatia.

isso também é sobre empatia, acredite ou não.

Mais sobre empatia.

Tudo isso é sobre empatia.


E isso... é sobre empatia.

 Em certo ponto da obra, a Misaki, personagem mais complexa e mais difícil de entender, fala justamente essa frase que reforça a ideia do mangá sobre a empatia; frase a qual, eu concordo plenamente. Basicamente, essas definições vagas que são propagadas sobre a empatia, assim como muitos discursos que incluem o tema, são apenas ideias romantizadas. Além disso, esse é um ideal que pode ser apropriado e corrompido muito facilmente. Muitas manobras políticas se centralizam em gerar medo, ou focar em medos e sofrimentos já existentes, e ganhar a confiança geral a partir de discursos empáticos e sem argumentos racionais de algo que efetivamente possa proporcionar melhorias definitivas. Políticos são eleitos assim. Afinal, a moralidade por trás da empatia pode trazer sentimentos violentos e sem propósito. Achar que sente a dor de alguém poderá dar a sensação de querer justiça a qualquer custo. Ao sentir empatia pelo coletivo, pode se dar o direito de querer cercear a minoria que supostamente é o ponto fora da curva. A definição do dicionário descreve apenas a sensação, mas não o que se pode ou deve fazer com isso. Empatia pode virar moralismo, julgamento, preconceito, exclusão e toda uma gama de coisas, muito facilmente.


 Apesar do ato de tentar compreender alguém ser algo realmente louvável, é impossível se colocar no lugar de outra pessoa. Os seres humanos são muito complexos na maneira de pensar, agir e sentir. Se as pessoas realmente pudessem se entender em um nível tão direto assim, ninguém precisaria se isolar, se sentir incompreendido e, com certeza, existiria menos intolerância e ódio. Quando, na verdade, o que acontece é o oposto; o uso desse conceito pra ditar o que é certo e o que é errado, o que é permitido e o que é proibido, o que é normal e o que não é. O julgamento pode muito bem se disfarçar de empatia, sem sequer ser notado. Não é incomum que pessoas disseminem discursos de exclusão baseando-se em alguma ideia distorcida de bondade e amor com o próximo.


 Assim como também não é possível sentir a dor de alguém. Até mesmo a maneira de sentir as coisas é diferente para cada indivíduo. Além de que, empatia não é uma ação. Independente do que se sinta pela dor do outro, não tem o mesmo valor se nada for feito, sequer ser compreendido o que a outra pessoa realmente precisa. Agir guiado por esse sentimento de achar que sabe o que o outro precisa baseando-se apenas nessa ideia, nem sempre é uma coisa boa. Empatia não é o mesmo que bondade, caridade ou conhecimento. Aceitar que as pessoas são diferentes entre si e respeitar essas diferenças, é uma forma de empatia muito mais efetiva.



 No entanto, quando falamos de ficção, esse conceito é real. A empatia que meu amigo sente por essa obra não é mentira. Os personagens fictícios, por mais bem escritos que sejam, quase sempre vão ter uma parte vazia. E esse vazio é justamente a empatia. Pois essa parte dos personagens não é escrita pelos autores, mas sim por você, o espectador. Indo além das ações dos personagens; a índole, o carisma e algumas outras características, inevitavelmente serão dadas por cada espectador. Mesmo que as obras os pintem como bons ou carismáticos, se você individualmente não pensar isso dos mesmos, então eles não serão assim, pra você. Por isso que um personagem que parece um herói para uma pessoa, pode não ser nada para outra. No mínimo, para as características mais abstratas de um personagem, a empatia se manifesta, já que elas partem do pressuposto de entender os sentimentos deles. A ficção realmente nos torna mais empáticos, em qualquer sentido da palavra.


 E ainda assim, mesmo nesse aspecto, NHK ni Yokouso! é um pouco diferente sobre a perspectiva da empatia. Em seu humor negro, com muitas piadas altamente questionáveis, o mangá traz um pouco mais de desenvolvimento aos seus personagens. A comédia é centralizada nos erros de um certo grupo de pessoas à margem de um comportamento esperado, mas que, bem facilmente de perceber, faz uma crítica a certos aspectos sociais do Japão. Por serem problemas de extrema inadequação social, e por se tratar de um problema tipicamente japonês, talvez fosse difícil para uma pessoal ocidental ou alguém do próprio Japão que tenha um estilo de vida mais mediano encontrar algo relacionável consigo mesmo dentro dessa trama. No entanto, em meio a essas piadas que expõe os erros e fracassos dos personagens, o mangá cria humor com diversas situações de pressão social, solidão e fracassos, que são coisas que todo mundo terá que lidar, inevitavelmente. De certa forma, o mangá, mesmo com seu humor mórbido, tem um olhar muito mais solidário com o tema de reclusão do que seria caso essa não fosse uma obra de ficção. Se fosse um documentário ou uma reportagem, isso traria mais sentimento de piedade ou uma compreensão mais pragmática, do que uma correlação mais humanamente direta, que é o que acontece com o mangá. Isso tudo sem precisar criar uma trama diretamente dramática. Pessoalmente, embora não sejam o tipo de personagem que geralmente me identifico, ainda consigo sentir essa proximidade com eles.


 No fim, realmente é isso, o sentimento de identificação, mas não o de entendimento. A trama demora bastante pra explicar o motivo pro Satou ter se tornado um recluso, e a cada vez que parece que ele vai se superar, o protagonista dá um passo para trás. De certa forma, é bastante difícil entender as turbulentas ações de cada personagem, independente do quanto você se identifique com eles. Nesse aspecto, tem uma personagem que eleva essa ideia a um novo patamar; a Misaki Nakahara. A índole da Misaki é algo questionável o tempo todo. Ao longo da trama, ela quase levou o Satou ao suicídio duas vezes, quase fez seu psicólogo ficar depressivo e mentiu por diversas vezes. Quando sua personalidade parecia que iria ser explicada, novamente era tudo mentira. A suposta empatia que ela demostra pelo Satou, sua vaidade absoluta, sua inseguranças, tudo isso é bem difícil de entender nela. A complexidade de um humano. E então, quando parecia que nada poderia fazer sentido pra Misaki, finalmente é revelada a grande motivação da personagem. O Akira, que na trama é um psicólogo, diagnostica que a Misaki sofre de uma condição chamada transtorno de personalidade histriônica. Uma pessoa com esse transtorno tem emoções extremas, autoimagem distorcida, necessidade de estar sempre no centro das atenções, autoestima dependente da aprovação das outras pessoas e um conjunto de várias outras características que a Misaki demostrou ao longo da trama. Ao ser diagnosticada com transtorno de personalidade histriônica, a narrativa da Misaki muda completamente, fazendo todo a impressionante caracterização dela ter que ser percebida de frente pra trás. Isso em si é uma resposta ao tema de empatia no mangá. No momento em que essa revelação é feita, a índole da Misaki já foi erroneamente julgada por nós, os espectadores dessa história, através do vazio que cabe ao espectador preencher. Certamente não é possível se colocar no lugar de alguém que enxerga o mundo através da lente desse transtorno, mas ainda é possível entendê-la, independente de qualquer valor de juízo que foi dado à mesma.



 Acredito que a resposta final que a obra dá para si mesma seja algo assim. No final da trama, novamente Misaki convence o Satou a se suicidar, mas dessa vez indo junto com ela. Todo o plano da Misaki consistia em fazer Satou se apaixonar de forma dependente por ela, para enfim ela o descartar e causar a tristeza suprema nele, para se livrar da dor absoluta que ela sente por viver. Mas, no fim, Misaki não é capaz de descartar o Satou. E então, o Satou foge do suicídio, obrigando a Misaki a fazer o mesmo. Eles conseguem salvar um ao outro. Talvez não por amor, nem por bondade ou altruísmo, mas certamente por empatia. Eles não conseguem sentir as mesmas coisas ou se entenderem plenamente, no entanto, eles compartilham do conhecimento sobre o que é ser um humano. Empatia de verdade não precisa ser partilhar de sentimento ou dores, mas sim, o genuíno sentimento de se importar positivamente com o outro. Não é sentir com, é sentir por.



#45 - Welcome to the Animelancolia


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 Este texto é parte de uma trilogia de posts intitulada de Trilogia do pensamento. Clique no link para ler os outros dois posts.

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Texto escrito por: Maviael Nascimento -  Páthos, logo existo.

Imagem de capa: Henrique Neves (Blog Casa dos Reviewers)

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