Me Apaixonei pela Vilã! & A Revolução Tsundere

 Isekais. Depois do estrondoso sucesso de obras como Sword Art Online e Re:Zero kara Hajimeru Isekai Seikatsu, os isekais ganharam tanta visibilidade e tantas obras explorando o gênero das maneiras mais distintas que, até mesmo as ideais de isekais que subvertem o sub-gênero já não são mais nenhuma grande novidade. A novel Me Apaixonei pela Vilã! (Watashi no Oshi wa Akuyaku Reijou.), escrita por Inori e ilustrada por Hanagata, é uma dessas obras que subvertem graciosamente a ideia de uma reencarnação em um Otome Game. A protagonista, Rei Ohashi reencarna no mundo de seu jogo de simulação de relacionamentos favorito, Revolution. Ao invés de escolher um dos três príncipes que têm rotas jogáveis no game, Rei se apaixona por um dos personagens que não tem rota jogável, a vilã do jogo, Claire François. Após ter lido a novel inteira, tenho certeza que abordar sobre como a obra trabalha com o gênero isekai seria um excelente tema para um post. No entanto, esse post não é sobre isso. Sinto muito caso alguém tenha caído nesse post esperando ler sobre isekais!


Yuris. Eis um gênero que me deu uma epifania tão grandiosa quanto a própria ascensão dos isekais. Desde sempre eu gosto muito de obras românticas. Mas, sinceramente, os animes e mangás, salvo algumas exceções, raramente me deixavam satisfeito nesse quesito. O mais normal era acontecer o contrário, obras que desenvolvem um relacionamento amoroso, ou até mesmo vários deles em uma mesma obra, mas nunca dão um desfecho satisfatório. Seja por sequer existir o tal desfecho, ou porque, no fim, parece mais uma amizade do que um romance propriamente dito. Eis então que eu resolvo assistir um anime chamado Yagate Kimi ni Naru, um yuri onde o romance é importante até pra entender a parte mais sutil e psicanalítica dessa obra. E o romance realmente existe, com beijos, encontros e todas as coisas comuns de qualquer relacionamento. Então depois li meu primeiro mangá yuri, seguido de várias outras obras GL e BL, ao ponto de yuri se tornar um dos meus gêneros favoritos. E bem, a novel da Inori também poderia ser abordado através do gênero yuri que com certeza seria um bom post... Mas, também não é hoje, sinto muito, fãs de yuri!


Tsunderes. O arquétipo "deredere" mais popular de todos, desde que a Rumiko Takahashi criou a personagem que é considerada por muitos como a primeira tsundere dos animes e mangás, a Lum, do mangá Urusei Yatsura (1978). Quase duas décadas depois, em 1995, apareceria a personagem que firmaria boa parte do "comportamento padrão" dos personagens tsunderes, antes mesmo da etimologia da palavra ter se formado, a Asuka Langley, do anime original Neon Genesis Evangelion. Mesmo sendo algo de extrema importância para a chamada "estética moe", que é algo que gosto, eu nunca consegui realmente entender porque as pessoas gostam tanto de tsunderes. Raras vezes consegui sentir alguma verossimilhança ou qualquer traço que pudesse fazer eu sentir empatia. Mesmo personagens muito populares, como a Taiga (Toradora), a Chitoge (Nisekoi) e a Kirino (OreImo), sempre me pareceram personalidades um pouco desagradáveis e surreais. Porém... admito que recentemente tem aparecido algumas personagens que compartilham dos trejeitos tsunderes que têm me feito rever minhas ideias pragmáticas. Mesmo algumas das personagens citadas acima, existem momentos que consigo simpatizar com elas, geralmente quando elas "quebram" esses estereótipos, gerando o tal do "gap moe". Lembrando que não estou falando que são personagens mal escritas, apenas as personalidades eram inaceitáveis a nível pessoal, pra mim. Uma dessas personagens que me fizeram começar a tentar entender a popularidade do tropo tsundere, é a Claire François, da novel citada anteriormente, Me Apaixonei pela Vilã!. Portanto, esse post é sobre como o arquétipo tsundere vem sendo representado atualmente e como Me Apaixonei pela Vilã! está relacionada a isso.


Me Apaixonei pela Vilã! & A Revolução Tsundere

Imagem original da capa: Lunacle

 A palavra "tsundere" não aparece nem uma única vez durante a tradução de todo o primeiro volume de Me Apaixonei pela Vilã!, e ainda assim é muito fácil identificar as característica do tropo na referida vilã da obra, Claire François. Bem, pra ser mais específico, Claire possui os trejeitos que identificamos hoje em dia, e que começaram a serem usados nos animes com uma frequência muito maior mais ou menos a partir de 2005, ano em que a indústria dos animes estava prestes a entrar em uma de suas fases mais prolíficas. Além de um grande aumento na popularidade dos animes, os seiyuus também começaram a receber mais visibilidade. Entre esses seiyuus, a Rie Kugimiya chamava à atenção por interpretar tantas personagens com esse comportamentos facilmente identificáveis que ela até recebeu a alcunha de rainha das tsunderes. Alguns de suas personagens que aumentaram a popularidade do arquétipo incluem: Shana, de Shakugan no Shana (2005); Louise Françoise, de Zero no Tsukaima (2006); Nagi Sanzenin, de Hayate no Gotoku! (2007); Taiga Aisaka, de Toradora! (2008) e Iori Minase, de The Idolm@ster (2011)

 E já que as visual novels, os otome games, os gyaru games e os eroges são muito importantes quando assunto é ditar o que é tendência, não posso esquecer de citar uma das personagens femininas tsunderes mais influentes em ambas as mídias, a Rin Toosaka, de Fate/stay night (2006 nos animes e 2004 nos games). Essa gigantesca gama de personagens femininas super populares nos anos 2000-2010 até hoje, compartilhavam de várias características: Serem ricas; têm descendência parcial ou completamente de fora do Japão; vozes e risadas estridentes; orgulho desproporcional; agressividade desproporcional e um lado fofo e gentil que aparece algumas vezes. E a Claire, obviamente, também possui essas características, assim como é descrito pela Rei ao longo do primeiro terço do volume 1 da light novel. No entanto, no mundo em que a Rei vivia antes de reencarnar, ou o mundo real, a Claire não era uma personagem popular entre os jogadores de Revolution. Como ela cumpre a função de vilã do jogo, a Claire é muito agressiva e pratica bullyng com a protagonista na história do game, principalmente na rota do príncipe pelo qual Claire tem interesse amoroso.


 Assim como acontece com tudo que fica popular, começam a surgir paródias, hipérboles, novas ideias e releituras em torno do que já existe. Com o conceito tsundere, obviamente, isso não é diferente. Até se pensarmos bem, as personagens tsunderes, principalmente as femininas, que vieram depois da Asuka, já são ideias bem diferentes do que foi feito em Neon Genesis Evangelion, embora compartilhem certas semelhanças. As características tsundere da Asuka são elementos importantes da caracterização da parte psicológica e dramática da personagem. Enquanto Asuka é dona de uma personalidade autodestrutiva, o arquétipo do qual ela faz parte se desenvolveu em algo quase sempre relacionado com comédia ou romance. Ao invés de desenvolvimento, as características tsunderes foram mais usadas no que abrange o carisma dos personagens. Características como ser agressivo, ou não saber lidar com os próprios sentimentos, que é algo que na vida real traria alguma solidão, na maioria dos animes de comédia e romance isso não tem o mesmo peso. Bem, não é como se fosse necessário ver personagens sofrendo e se destruindo em muitos animes, assim como a Asuka faz, então tem sentido essa mudança natural no arquétipo. Mas, de certa forma, o que realmente faz as ideias mudarem e evoluírem são as obras que usam essas ideias para criar algo inédito; como em Bakemonogatari (2006), que faz uso de vários estereótipos da cultura otaku, e justifica a existência desses estereótipos ao abordar questões profundas, como abuso e depressão, e explicar como a personalidade de cada personagem foi moldada. Obviamente a citação de Monogatari é por causa da Hitagi Senjougahara, que é uma de minhas personagens favoritas da vida. A própria Gahara-san faz piada com seu jeito de tsundere, mas se você for pesquisar na internet, também vai encontrar o nome dela facilmente em listas de personagens kuuderes e danderes, já que ela possui características de todos esses arquétipos, mas não se resume a nenhum deles. Também tem outros usos do arquétipo de maneira menos complexa, como em Nichijou (2006), que tem a Misato Tachibana, uma personagem que exagera tanto nos trejeitos tsunderes que chega até mesmo usar um lança-mísseis só pra disfarçar o seu lado deredere. Outro caso interessante é SKET Dance (2007), no episódio 52 do anime, intitulado "A Garota Tsundere com Twin-Tails", quando, não surpreendentemente, aparece um garota tsundere com twin-tails chamada Saaya Agata, querendo se livrar desse estereótipo, por causa dos problemas de comunicação que isso acarreta na vida dela.


 A palavra tsundere (ツンデレ) foi, em sua teoria mais aceita, criada em 2002, quando um usuário de um fórum da internet uniu as palavras tsuntsun (ツンツン onomatopeia de pessoa se virando enojado) com deredere (デレデレ onomatopeia usada em situações de afeto). Entre 2002 e 2021, muitas coisas mudaram, tanto em termos de cultura quanto econômicas, e isso influencia as mídias como um todo. Me Apaixonei pela Vilã!, sendo uma obra que nasceu em 2018, reflete uma ótica mais atual, e isso é passado na narrativa, inclusive. A Claire François, que é a principal personagem a ser pensada no tema desse post, é um ótimo exemplo para falar sobre como esse arquétipo possivelmente será mais comumente apresentado pelos próximos anos. Portanto, antes de entrar no tema da novel definitivamente, vamos fazer o último desvio pra tentar pensar em como o tsundere vem sendo apresentado em tempos recentes. Lembrando que essa parte é muito subjetiva, já que parte unicamente da minha própria forma de pensar as coisas, e está tecnicamente limitado pela quantidade de obras mais recentes que assisti; que não foram poucas, mas estão muito longe de serem todas. E pra falar dessa parte mais moderna, eu não poderia deixar de começar com outra personagem que não fosse...


...A Nino Nakano. A titulo de curiosidade, esse blog já tem dois posts sobre 5-toubun no Hanayome (2017), que somados dão quase uma hora de leitura, sendo que, pelo menos metade desse tempo é dedicado à Nino. Isso é de tanto que gosto dessa personagem. E já que ela é uma das tsunderes mais populares dos animes e mangás mais recentes (digamos, entre 2016 e atualmente), a Nino é o exemplo perfeito para falar sobre as mudanças no arquétipo. Principalmente porque a popularidade dela aumentou muito justamente depois dela fazer coisas, digamos... incomuns pra uma tsundere. Penso que a tendência a ser seguida seja essa; personagens cada vez menos presas ao comportamento padrão do estereótipo, que talvez tenha ficado um pouco repetitivo. Essas mudanças que eu penso que estão ocorrendo, não são apenas no arquétipo em si, mas também nos gêneros das obras. As comédias "slapstick" (termo cinematográfico que descreve o humor com violência física) que faziam tanto sucesso nos animes entre 2000 e 2010, já não estão mais tão em alta quanto antes. Com isso, a característica das personagens femininas tsunderes serem desproporcionalmente violentas, é algo que também mudou. E então o tal do gap moe entre o tsuntsun e o deredere, também termina por ficar mais visível, ao ponto de nem existir mais em algum ponto da obra, como é o caso da Nino, que passa a demostrar afeição constantemente sem deixar de lado seu comportamento tsundere.


 Os romances também vêm mudando, de formas diferentes entre cada uma das demografias. Atualmente me parece muito mais fácil encontrar obras em que o romance, ou ao menos o desenvolvimento dos sentimentos, tomem forma muito mais rápido. Apesar que sempre existiram obras como Horimiya, mangá de 2011, em que os relacionamento principal se formou bastante rápido, sinto que esse tipo de narrativa um pouco menos lenta, parece estar aumentando nas adaptações em animes de mangás recentes. Não acompanho o mercado de mangás o suficiente pra afirmar algo sobre alguma mudança no ritmo das narrativas, mas sei que, inevitavelmente, as obras, mesmo as japonesas, tendem a abordar assuntos que eram pouco comuns até então. Como Kanojo mo Kanojo (2020), que mostra um relacionamento amoroso consentido entre três pessoas, ou seja, um trisal. KanoKano não foi nenhum sucesso de avaliação em sites database, mas tornou-se um dos animes mais assistidos da temporada. Uma personagem que retrata bem como o comportamento tsundere pode estar diferente no que se refere ao romance, é a Rika Hoshizaki, que, assim como a Nino, também é dublada pela Ayana Taketatsu, a nova cara do tsundere (?). A Rika não perde tempo em entender e expor seus próprios sentimentos. Mas tem algo que acho um tanto mais interessante na caracterização dessa personagem; existe uma certa independência feminina no comportamento orgulhoso dela. A Rika é uma MeTuber (o mesmo que YouTuber) que usa roupas a destacar o tamanho de seus seios em seus vídeos no MeTube, para atrair inscritos. Tem a questão dela ser uma menor de idade usando a sensualidade pra atrair público, o que por si só já seria tema pra um post, mas a questão a ser abordado nesse post não é essa. O que penso é que, talvez, o arquétipo tsundere possa vir a ser mais usado pra destacar um posicionamento feminino mais forte e direto dentro de um relacionamento. Nos animes e mangás, não é algo muito comum ver uma garota tomando a iniciativa de conquistar a pessoa que gosta (nos yuris isso é comum, no entanto). Me parece que ainda existe uma visão muito tradicionalista sobre isso, mas é algo que possivelmente esteja mudando.


 Personagens tsunderes têm fortes temperamentos. E quando falamos de personagens femininas, não existe nenhum motivo pra essa personalidade do arquétipo ser usado apenas para romance ou comédia. É assim com a Karin Miyoshi, do anime Yuuka Yuuna wa Yuusha de Aru (2017). A Karin é apresentada como uma garota muito orgulhosa e individualista. Já na primeira cena ela declara ser a yuusha mais forte e pede para que as outras não a atrapalhem. Com o passar dos episódios vai ficando claro porque ela tinha essas atitudes frias e se recusava em se aproximar das pessoas, até culminar em uma cena onde o forte orgulho dela quase a destrói. YuYuYu até faz algumas piadas com o jeito tsundere da Karin, mas, no geral, esse é um traço de personalidade muito positivo na caracterização e desenvolvimento da personagem. Em YuYuYu, em teoria, não tem romance envolvendo a personagem (embora exista um certo shipp dela com a Fuu), então a personalidade tsundere dela é um elemento muito sério para o arco de desenvolvimento psicológico da personagem. Algo um pouco mais parecido com a Asuka em Evangelion.


 Apesar desse post estar focado nas personagens femininas, que é onde realmente reside o ponto que quero chegar com esse post, também existem muitos personagens masculinos que se encaixam no conceito de tsundere. Alguns nomes de personagens masculinos que encontrei nas muitas listas de tsunderes que pesquisei incluem: o Edward Elric, de Fullmetal Alchemist (2001); Vegeta, de Dragon Ball (1984); Kyou Sohma, de Fruits Basket (1998) e Shinichi Chiaki, de Nodame Cantabile (2001). Todos esses personagens foram aparecendo nesse tipo de lista bem depois que o termo "tsundere" já havia sido popularizado. Não é tão incomum encontrar personagens masculinos com trejeitos tsunderes um pouco mais fortes em obras de harém invertido, otome games e outros tipos de produções que visam como o alvo majoritário o público feminino. E então, uma certa obra resolveu brincar com o arquétipo em ambos os gêneros e criar uma história sobre garota tsundere x garoto tsundere. Kaguya-sama wa Kokurasetai: Tensai-tachi no Renai Zunousen (2015) é o seu tradicional mangá de batalhas mentais. Com a diferença de que não é um mangá de ação, e sim uma comédia romântica, e as pessoas que travam essa disputa, são apenas orgulhosas demais para declararem os seus sentimentos. Kaguya Shinomiya e Miyuki Shirogane pensam que aquele que primeiro admitir que está apaixonado, será a parte submissa do relacionamento, então ambos vão aos mais cômicos extremos para não saírem perdendo nessa disputa. Uma coisa que gosto no estranho relacionamento desses dois, é que eles estão em pé de igualdade, até mesmo no comportamento tsundere. No mangá, a trama começa a ficar mais séria em algum ponto, mas a obra sempre abordou sobre essa dificuldade que os protagonistas têm em lidar com os próprios sentimentos, que é uma das características mais evidentes do arquétipo.

 Nino Nakano, Rika Hoshizaki, Karin Miyoshi, Kaguya Shinomiya, além de várias outras personagens femininas tsunderes recentes, como a Chizuru Ichinose, protagonista de Kanojo, Okarishimasu (2017), todas essas personagens populares apresentam uma certa evolução na representação feminina tsundere nos animes e mangás, em minha opinião. E sinto que essa é realmente a maior mudança que possivelmente está ocorrendo, talvez lentamente, no arquétipo tsundere, nos romances e nas animações japonesas como um todo, apesar de ainda ser bastante fácil encontrar exemplos de animes pra me contradizer. Acho que isso era o que de fato me causava estranheza no arquétipo tsundere nas personagens femininas; quase sempre eram garotas fortes e decididas, mas que sempre estavam esperando que seu interesse amoroso se declarassem, ao invés de simplesmente fazerem isso por si mesmas. Algo mais próximo de um comportamento feminino tradicionalmente esperado, onde a mulher pode ser forte, mas nunca tem a palavra final. E o que tenho percebido recentemente, principalmente nas personagens ditas tsunderes, são essas tradições antigas sendo completamente quebradas. Seja por garotas que uma vez que se apaixonam ficam super decididas (Nino e Rika), por garotas que se recusam a perder (Karin e Kaguya), ou garotas que trabalham e se esforçam por si mesmas (Chizuru e Rika). O Japão fica literalmente do outro lado do mundo, então não sei exatamente qual a força dos movimentos feministas por lá, muito embora a maioria dos artigos que li apontem que o país ainda esteja bem atrás na classificação de países em matéria de igualdade de gênero (120ª colocação segundo o relatório de 2020 do Fórum Econômico Mundial, sobre desigualdade de gênero). Mas acho pouco provável que, mesmo que essa mudança no arquétipo seja real, isso aconteça em virtude de movimentos feministas. Segundo algumas pesquisas que fiz, existe alguns estudos (ocidentais, por sinal) do porquê os homens se sentem atraído por personalidades difíceis de se conquistar. Algo como o valor da conquista, ou mulheres que os tratem um pouco mal. E bem, sabemos que, ao fim de tudo, o consumidor médio, nesse caso os otakus japoneses, é o que mais influência na popularização e na mudança desse tipo de representação. Isso explicaria porquê apareceram tantas personagens tsunderes com personalidades praticamente idênticas durante a fase em que o arquétipo mais esteve em alta. E essas muitas repetições  poderem terem ficado cansativas, trazendo pequenas mudanças, até o arquétipo ficar menos exageradamente estereotipado, como é o caso das personagens acima citadas. Como eu disse antes, essa parte é toda muito subjetiva, e que talvez eu apenas esteja enganado, já que até mesmo pra entender as mudanças desse tipo de coisa é necessário muito tempo e observação pra saber quando as exceções deixaram de serem exceções. Eu sei que a tendência das coisas é mudar, e a arte está sempre presente nessas mudanças.

Me Apaixonei pela Vilã!


  O jogo que Rei jogava na vida real, no qual ela misteriosamente reencarnou, não se chama Revolution à toa. Essa história é ambientada em um mundo onde a plebe recentemente alcançou uma importância maior devido à descoberta de pedras mágicas cujo o uso não difere as pessoas pelos status vigentes. Devido a esse fato, o rei decreta leis que permitem que nobres e plebeus estudem nas mesmas escolas, sem diferenciação de classes. No entanto, as classes sociais sempre foram algo muito forte nesse mundo, portanto algumas pessoas não aceitam essas mudanças. Uma dessas pessoas é a Claire François, a referida vilã do título.

 Claire tem praticamente todas as características mais comuns em uma tsundere. Desde seu jeito de dar risada, até aos seus trejeitos de fala e temperamento inconstante. Mas, claro, se fosse apenas isso, eu nem estaria a usando como exemplo principal nesse post. Por trás do que pode ser chamado de "personalidade tsundere", existem muitos outros fatores narrativos e de caracterização de personagem. A personalidade da Claire é um retrato da ambientação do mundo em que a obra se passa. Representa não somente uma individualidade da Claire, mas sim um comportamento típico da boa parte dos nobre desse mundo. A reforma social que promove uma certa meritocracia que permite que plebeus se destaquem, esconde, na verdade, uma certa decadência política. Nobres puros, como a Claire e a família François, que valorizam muito o status, eram contra esse novo sistema. Tanto Claire quanto vários outros personagens, são pessoas muito preconceituosas. Então parte do forte orgulho, que é uma das características tsunderes mais fortes da Claire, pode ser lido como preconceito.

 Se eu tivesse que citar qual realmente é a grande diferença na personalidade arquetípica tsundere da Claire para o que vemos normalmente desse aspecto, eu diria que é o valor que isso tem para a obra em si. A dama vilã é de fato uma personagem controversa. Como já dito, ela faz bullying com a protagonista, além de ter muito preconceito com pessoas menos favorecidas. No jogo Revolution, onde não seria possível se aprofundar muito na personagem, seria realmente difícil simpatizar com a Claire, assim como a Rei descreve na página 19:


 Mas a proposta dessa obra é ser uma reencarnação em um otome game onde a protagonista tem interesse amoroso por outra garota. Se você não está convencido que essa obra não está pra brincadeira, apenas veja a capa do volume 3 da light novel. Mesmo Claire tendo tal personalidade, Rei gosta dela por enxergar nela uma certa humanidade que não se encontraria em uma personagem sem falhas. E por ser uma narração passada inteira em primeira pessoa pela Rei, a caracterização da Claire é feita inteiramente sob essa ótica, de alguém apaixonada, mas que também é bastante pragmática. Sinceramente, talvez essa seja a melhor caracterização que já vi em torno das características tsunderes. É possível entender porque Claire desenvolveu essa personalidade. Isso é um fruto da sociedade desigual e extremamente pautada em classes sociais em que ela nasceu. Assim como é possível entender porque ela é tão egoísta e mimada.

 E, apesar da narração em primeira pessoa, muitas "fraquezas" humanas são apresentadas pela própria Claire. Já no primeiro capítulo, enquanto as duas desenvolvem um tipo de relacionamento de amor unilateral e ódio também unilateral, Claire mostra suas emoções e inseguranças. Por exemplo, ela gosta bastante de sua serviçal, a Lene, além de ser apaixonada por um dos 3 príncipes do jogo. E por ter sido assim a vida inteira, Claire tem uma noção quase cruel da própria pessoa. Apesar de ser muito egoísta, ela percebe bem como as pessoas ao redor dela agem. Por essa percepção, Claire sente muita auto depreciação e solidão, ao ponto de não entender como alguém poderia se apaixonar por ela. Como eu disse lá no começo do texto, possuir as características do conceito tsundere seria algo complicado na vida de alguém, assim como acontece em Me Apaixonei pela Vilã!:


 Acredite, o fato dessa novel ser um yuri e Claire ser a vilã do jogo é algo muito significativo. Não apenas é um uso muito bom dos clichês em torno do tsundere, como também é algo revolucionário dentro da própria narrativa da novel. O jogo narra a história de uma revolução da plebe, mas uma outra revolução acontece a partir da Rei e da Claire. Uma revolução que mudará o status quo da sociedade. Como já foi citado, o comportamento da Claire representa o pensamento de boa parte da nobreza em Revolution, e esse mesmo tipo de pensamento está para ser destruído. No entanto, é quase certo que a própria Claire será parte responsável por essas e outras mudanças. É a revolução dentro da revolução em Revolution. Não acho que a Claire perderá seus trejeitos tsunderes, e ao invés disso, esses trejeitos serão algo muito importante para a evolução da história. Mesmo com todos os seus problemas de personalidade, a Claire tem um desenvolvimento tão bem feito que não tem como negar que ela é uma personagem incrível.

 A verdade é que eu poderia ter escrito esse texto mais futuramente, depois de já ter lido todos os volumes, mas sei que só nesse primeiro volume já dá pra ver como a autora trabalha bem no uso do arquétipo tsundere. Não é apenas uma característica engraçada usada pra situações românticas. É uma forte caracterização da Claire, que representa muito do que eu penso que vem mudando em personagens assim e que me fazem realmente começar a amar o tropo. O arquétipo tsundere, que é conhecido por estar presente em personagens cheios de personalidade, é perfeito pra apresentar uma independência feminina cada vez mais forte. Bem, talvez eu apenas esteja pensando demais e as personagens aqui citadas continuem sendo apenas uma pequena parcela que por acaso ficaram populares recentemente. Afinal, se olharmos pro passado, deve ter personagens tsunderes fazendo coisas iguais as que citei aqui, ou, se olharmos pro presente, talvez tenham muitas personagens tsunderes fazendo exatamente as mesmíssimas coisas que ficaram marcadas no tropo. O que sei é que, a empatia que anteriormente eu não conseguia sentir por esse tipo de personagem, agora consigo sentir muito fortemente por essas personagens mais recentes. Então seria ótimo se eu estivesse certo sobre o arquétipo atualmente representar mais poder feminino. Não sei você, mas eu gosto de personagens fortes. Sejam ou não tsunderes, que promovam a revolução!

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Agradecimento especial:

Para a incrível ilustradora Lunacle, que gentilmente me permitiu usar sua ilustração na capa do post.

Pixiv: Lunacle

Twitter: @Goth_lunacle

Instagram: goth_lunacle

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Texto escrito por: Maviael Nascimento, mas não foi pra você, baka!

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Não que eu me importe se você vai ler, porém temos posts semelhantes a esse: Here U Are & Tamen De Gushi / Todo o Desenvolvimento Narrativo de 5-toubun no Hanayome / 5-toubun no Hanayome : Arco - Sete Despedidas

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