Yui no Espectro do Autismo?
Por alguma razão, essa lembrança aleatória ficou gravada de uma forma muito vívida na minha memória. Eu estava em uma livraria quando um carro parou e trouxe várias caixas com livros, revistas e mangás. Entre todas essas publicações, uma me chamou atenção. Era um mangá cujo o título tinha apenas três letras, um hífen e uma exclamação. A capa, que tinha um fundo vermelho muito forte, trazia a imagem de uma garota sorrindo enquanto segurava uma guitarra Gibson Les Paul, claramente muito grande para ela. A sinopse na contracapa narrava algo sobre um clube escolar que estava prestes a fechar se não conseguissem mais um membro pro clube. Para contornar esse problema, convocaram a garota da capa, que se chamava Yui, para fazer parte do clube como uma guitarrista. O problema era... a garota não sabe tocar guitarra. Esse contraste foi algo surpreendente para alguém como eu, que gostava apenas de rock na época. Enquanto a capa mostrava uma garota fofa segurando um instrumento que muitos chamariam de sagrado, a contracapa mostrava que ela sequer sabia o que fazer com aquela guitarra. "Que garota interessante", eu pensei.
Apenas anos depois eu realmente viria a conhecer a obra que ficara gravada em minha mente, e descobrir que, a "garota interessante", era bem mais interessante do que eu pensei na época. A Yui Hirasawa é uma personagem um tanto incomum, mesmo aos padrões do moe, que sempre trazem garotas com as personalidades mais diversas. A Yui tem muitas características conflitantes entre si. Como por exemplo, ser muito distraída, mas ainda conseguir se focar completamente em algo; ter dificuldade com o aprendizado escolar, mas conseguir dominar um instrumento mesmo sem entender a parte teórica; facilidade em aprender coisas específicas, ao mesmo tempo em que esquece outras, etc. Devido ao comportamento dela, não demorou muito pra surgir a teoria que Yui esteja no espectro do autismo. Revendo a obra com esse pensamento em mente, é realmente fácil perceber porque essa teoria é mais forte pra Yui, do que para outros personagens que compartilham da mesma teoria, como a Mayuri Shiina, do anime Steins;Gate. Mas, se a Yui é autista, por que isso não é citado nunca durante a narrativa? Será que Kakifly criou uma personagem com tal característica sem perceber? Bem, essas perguntas já podem ser parte da resposta, ou podem ser o que vão desmistificar tudo. De qualquer maneira, é sempre bom saber mais sobre o autismo.
A afirmação de que todas as pessoas autistas são frias e não gostam de contato físico é FALSA. |
O espectro do autismo, ou melhor dizendo, o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), é um transtorno do desenvolvimento. Geralmente se apresenta logo nos primeiros anos de vida, comprometendo as habilidades de comunicação e interação social. O transtorno do espectro do autismo é classificado em três níveis diferentes: leve, médio e grave. A possibilidade da Yui estar nos espectros mais graves do autismo é completamente nula. Se ela tivesse um grau de autismo grave, ela apresentaria problemas de coordenação motora e de socialização, e exigiria muito mais suporte de sua família. Então, Yui poderia está em um nível mais leve, ou médio do autismo. Ela apresenta algumas características de ambos os níveis. Apesar disso, se Yui tivesse no grau médio do autismo, ela teria mais dificuldades com a linguagem verbal, não-verbal e nas interações sociais. Apesar de Yui falar de uma maneira mais lenta e pausada, ela jamais demostrou qualquer dificuldade linguística ou com comunicação social. No special Live House e em várias outras cenas, fica claro que Yui tem facilidade em se relacionar com as pessoas.
Então, apesar de ter algumas poucas características desse nível, as chances de Yui ter um nível médio de autismo, também são nulas. Considerando que a teoria esteja certa, e Yui realmente seja autista, ela estaria no nível mais leve, e o seu tipo de autismo mais provável seria a síndrome de Asperger. Essa síndrome também é conhecida como autismo de alto funcionamento, pois quem tem a Síndrome geralmente demostra uma inteligência superior à média. Também é comum que, quem tenha essa síndrome, se torne obcecado por um objeto, assim como a Yui, razoavelmente, se torna com sua guitarra. A síndrome de Asperger é três vezes mais comum nos meninos do que nas meninas. E também, é comum que meninas com níveis de autismos leves passem a vida inteira sem receberem o diagnóstico médico. Ainda não existe uma conclusão definitiva sobre as causas do autismo, mas entre as possibilidades estudadas sobre o fato do transtorno do espectro do autismo ser mais comum em meninos, uma delas está relacionada à origem genética ligada ao cromossomo X, que os meninos possuem apenas um, enquanto as meninas possuem dois (essa é uma explicação resumida; procure mais informações). A dificuldade do diagnóstico médico para meninas autistas é explicado também por diversos fatores sociais e comportamentais. De certa forma, isso poderia ser a explicação para o possível autismo da Yui não ser revelado durante a narrativa. Seria possível que nem a própria Yui e nem a família Hirasawa saibam que ela está no espectro do autismo. No mínimo isso explicaria porque as amigas dela não sabem.
Muita das características que a Yui apresenta também podem estarem ligadas a outros transtornos de desenvolvimento, como a dispraxia. Também seria possível que ela apenas tenha Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), isoladamente de qualquer outra forma de transtorno. Então, por que será que quase sempre associam primeiramente ao autismo? Bem, acredito que isso venha do conhecimento comum de que crianças autistas têm inclinação e facilidade para o aprendizado da música, cantando ou tocando instrumentos. Em K-On!, a Yui conseguiu aprender a tocar a guitarra, mesmo quase não entendendo sobre a parte teórica do instrumento. Existem diversas cenas onde ela consegue reproduzir algum efeito sonoro ou notas muito específicas apenas de ter ouvido uma única vez. Mas, mesmo essa facilidade que ela tem para tocar guitarra, também pode ter outras possíveis, e até mais prováveis explicações, para além do autismo. Uma forte possibilidade é que a Yui tenha um fenômeno auditivo raro chamado ouvido absoluto. Uma pessoa que tem ouvido absoluto pode identificar e recriar notas musicais, mesmo sem ter um tom referencial. Outro detalhe importante é que, apesar de talvez não parecer, a Yui é muito esforçada. O anime se foca bastante na comédia e tem uma passagem de tempo muito rápida, então talvez dê a impressão que a Yui dominou a guitarra mais rápido e mais fácil do que realmente foi. No entanto, há diversas cenas em que é mostrado que ela recebe muitas dicas de outras guitarristas mais experientes que ela... Que são basicamente todas as outras guitarristas que aparecem no anime. Existe ainda uma certa cena em que a Ui, irmã mais nova de Yui, afirma que a Yui pratica todos os dias sozinha desde que comprou a guitarra. Um outro ponto importante a ser ressaltado, está no fato de que, apesar de ser talentosa, Yui é a instrumentista que possui menos técnica entre todos as personagens musicistas do anime. Ela sempre melhora, gradualmente, mas nunca tão rápido ao ponto de superar outras instrumentistas mais experientes que ela. No episódio 12 da primeira temporada, em uma cena em que Ui está se passando pela Yui, é mostrado que até ela possui mais facilidade com a parte técnica do instrumento do que sua irmã mais velha possui. Apenas de ter lido a partitura e a entendido corretamente, Ui demostrou uma impressionante habilidade. E isso leva à outra possível explicação sobre o porquê da Yui conseguir aprender guitarra sem sequer entender uma partitura direito. A ciência comprova que a inteligência (ou a facilidade de aprendizagem, que é o contexto nesse post) é, em partes, devido à genética. Tem uma passagem do anime em que a Ui consegue fazer um home run com apenas uma tentativa depois de ter ouvido algumas poucas instruções, que sequer foram dadas à ela. A facilidade que a Ui tem em aprender as coisas é tão, ou mais impressionante que a Yui. Isso vem do fato de que a Ui é tão inteligente quanto a Yui, porém muito mais focada. Yui melhora bastante na segunda temporada do anime, não coincidentemente, justamente quando ela começa a levar a música cada vez mais a sério.
Sempre que Yui é mostrada no passado através de flashbacks, fica notável que ela sempre foi distraída. A Yui, quando criança, se distanciava facilmente da realidade e ficava constantemente imersa em seus próprios pensamentos e alheia a tudo que lhe cerca. Já no presente, Yui tem muito talento pra tocar guitarra, e é uma pessoa muito empática. Se distrair em seus próprios pensamentos, ou demostrar grande talento em áreas específicas, todas essas são características de tipos diferentes de autismo. Elas podem, no entanto, estarem presentes na mesma pessoa. É relativamente comum acharem que o autismo está sempre associado ao retardo do desenvolvimento mental ou à genialidade, mas, isso não é necessariamente verdade. Autistas, assim como todas as pessoas, não são todos iguais.
Sobre a pergunta do título desse post, não é realmente possível de ser respondida. É uma possibilidade com fortes indícios. É possível que a Yui seja autista, ou tenha algum outro tipo de transtorno, como a dispraxia ou o TDAH (que muitas vezes está junto com o autismo e a dispraxia). Mas também é muito provável que seja apenas o jeito normal dela. Yui tem o privilégio de poder viver sua juventude sem grandes preocupações, então, é provável que mesmo o meio ambiente em que ela vive tenha influenciado nesse jeito aparentemente leve com que ela vive sua vida. O diagnóstico do autismo só pode realmente ser dado por um especialista, através do relato dos pais e observação da criança em diferentes ambientes. Além disso, é possível estar no espectro do autismo sem necessariamente apresentar os sintomas mais conhecidos. Portanto, é possível que a Yui seja autista, assim como também é possível, e até mais provável, que ela não seja. Ah, bem, no fim a Yui é a Yui. Uma garota engraçada que vive a vida ao máximo. O que a faz ser uma guitarrista/vocalista e pessoa incrível, é a sua personalidade. E eu acho que ela é incrível do jeito que é.
Extra:
Todo esse texto contou com a consultoria do Doutor Crisóstomo, psicólogo formado pela Faculdade Pitágoras (CE). Fiz algumas perguntas ao Doutor Crisostomo pra complementar as informações desse post:
Animelancolia: Doutor Crisóstomo, qual é o tratamento para o autismo? E existe alguma forma de conseguir tratamento gratuito?
Doutor Crisóstomo: O tratamento para o autismo consiste na atuação nos sintomas apresentados. Atualmente, a técnica que cientificamente traz mais benefícios é através do ABA, que é um conjunto de técnicas comportamentais, que consiste em modelar o comportamento da criança (quanto mais cedo começar, melhor) para que se aproxime do comportamento de uma pessoa típica. O processo para essa técnica é feita por um acompanhante terapêutico (AT), que acompanha a criança nos ambientes que ela frequenta. É como se fosse um treinamento de habilidades. Geralmente têm ONGs que oferecem esse tratamento de forma gratuita.
Animelancolia: É necessário algum tipo de cuidado ao lidar com crianças autistas?
Doutor Crisostomo: Como o autismo é um espectro amplo, e cada caso é um caso e varia de leve a grave, os cuidados também variam. Por exemplo: tem alguns que tem hipersensibilidade sensorial a som ou ao toque, então deve ter cuidado com sons altos, ou abraços. Tem alguns que reagem de maneira mais exagerada quando existe alguma mudança. O importante é sempre ter muita paciência para tentar acalmar toda vez que ver que a criança está começando a ficar agitada com a situação.
Animelancolia: Como e onde se informar melhor sobre o autismo?
Doutor Crisostomo: Eu indico procurar ONGs, que geralmente reúne pais e profissionais. Não indico uma específica porque, como moro no Ceará, minha realidade é diferente para outras regiões do Brasil, essas ONGs fazem um acompanhamento multiprofissional completo, além de hospitais de referência, claro.
O Doutor Crisóstomo Almeida Leandro, é Psicólogo Clínico (CRP 11/15410), Especialista em Terapia de Casal e Familiar. Recentemente criou o canal Psicologia Conecta, onde aborda temas psicológicos dentro dos animes e da cultura pop.
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Texto escrito por: Maviael Nascimento, sky high!
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