O Final de Shoujo Shuumatsu Ryokou Sob a Ótica do Niilismo de Nietzsche
Não importa quantas vezes eu o leia, o final do mangá de Shoujo Shuumatsu Ryokou sempre me deixa impressionado. Acho incrível como, ao fim de tudo, depois de perder todos os seus objetos, seu conhecimento, sua utilidade e o seu propósito, as meninas ainda consigam afirmar que viver é incrível. Quando tudo que ela possui é nada mais do que o próprio ser e a sua companheira que, em suas próprias palavras, se tornou uma única forma de vida com ela, a Chito chega a tal entendimento.
A Chii-chan representa um lado mais humano na obra. Aquela que, mesmo em um vão esforço, sempre buscou encontrar um significado para as coisas. Sendo assim, e vivendo em um mundo tão absurdo, a Chii-chan sempre foi alguém com atitudes mais lógicas e negativistas. Então sempre me perguntei exatamente o que significa a afirmação de que viver é incrível, na concepção dela. E mais que isso, sempre tentei entender por que eu sinto uma conexão tão grande com esse final, onde o que resta é apenas o vazio e a falta de um significado maior para todas as coisas.
Shoujo Shuumatsu Ryokou é uma obra com diversas interpretações sobre óticas diferentes, desde o absurdismo ou até mesmo como uma metáfora sobre religião. Uma ideia muito comum, é que o mangá tem um ponto de vista ligado ao niilismo. Uma premissa onde tudo é vazio e absurdo, e a inevitabilidade de tudo que existe é acabar, assim como é sugerido pelo título do mangá. No entanto, é muito difícil pensar na obra dessa forma, pois existem várias abordagens do niilismo. Mesmo os grandes pensadores que são contemporâneos ao nascimento ou as mudanças do conceito do niilismo, têm formas diferentes de conceber o niilismo. Ao longo da história, o movimento já esteve ligado ao radicalismo extremo, onde se pregava que nada é moral e nem imoral, fazendo com que tudo deva ser permitido; ao negativismo, que consiste na negação do mundo que se percebe; ao conformismo, quando se diz que existência humana não tem sentido ou finalidade, e que, portanto, não se deve buscar um propósito para a mesma. Isso é o que podemos chamar de corrente filosófica niilista, que acredita no vazio e o seu conceito é fundamentado na subjetividade do viver.
Então, para escrever esse texto inteiramente pautado na subjetividade da minha interpretação, eu reli Shoujo Shuumatsu inteiro tentando pensar nos elementos da obra sob a perspectiva do que eu consigo entender da filosofia niilista, especificamente do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), um dos maiores e mais importantes pensadores da história, e assim tentar compreender as palavras finais das meninas. Claro, não estou defendendo as ideias do Nietzsche e nem afirmando que Shoujo Shuumatsu aborde sobre a filosofia dele. Esse é apenas um exercício de imaginação, que pode, ou não, ter alguma verdade.
Certa vez o Nietzsche definiu o niilismo como a "falta de convicção em que se encontra o ser humano após a desvalorização de qualquer crença". Em um correlação direta, Shoujo Shuumatsu começa exatamente sob essa perspectiva. Chito e Yuuri, duas crianças de idades desconhecidas, vivem em um mundo destruído por guerras, provavelmente geradas pelas diferenças de opiniões políticas, religiosas e ideológicas. Nem elas mesmas sabem por que o mundo se encontra assim, na verdade. As ideias que a humanidade tinha sobre estado, democracia, religião, política, moralidade, etc., são preceitos dos quais elas não possuem conhecimento suficiente. Ou seja, as suas crenças e seus valores não são influenciados por quaisquer fatores externos. Isso seria o que Nietzsche definiria como niilismo passivo. Pois a Chii-chan e a Yuu, mesmo que seja pela ausência de conhecimento, elas rompem com a tradição e a moral cristã e de qualquer outra coisa que o filósofo definiria como muletas metafísicas, mas ainda carregam parte dos ideais do avô delas e do pouco conhecimento que elas tinhas antes de ficarem sozinhas no mundo.
O Sentido do Mundo de Shoujo Shuumatsu
Nietzsche dizia que a sociedade se encontra em decadência devido à racionalidade científica e ao cristianismo (que podemos traduzir aqui como religiões em geral). Então Shoujo Shuumatsu pode partir dessa ideia, ao vermos uma jornada onde identificamos como a causa do fim do mundo onde vivem Yuu e Chi-chan, pequenos e grandes símbolos que são vestígios dessa ciência e religiosidade que levaram o mundo à sua ruína. Basta prestar um pouco de atenção nos cenários e já percebemos que a maioria dos lugares são repletos de engrenagens, construções tecnológicas, cenários bélicos etc. Não apenas isso, mas a Tsukumizu, autora do mangá, também parece aplicar bastante esforço em colocar uma certa lógica por trás do funcionamento autônomo desses cenários.
Por diversas vezes, nos cenários da obra, aparecem estátuas, que a Chii-chan entende que são representações de figuras divinas adoradas pela civilização anterior a elas. Algumas dessas imagens são representadas vestindo roupas e mantas, fazendo-as se assemelharam mais com figuras humanas, ou santas, enquanto outras não carregam nenhum detalhe. Essas mais simplórias, geralmente aparecem com olhos desconfiados, olhando para a esquerda ou direita. E enquanto as meninas prosseguem sua jornada, essas estátuas vão parando de aparecer. Talvez parte do que causou as guerras foi a intolerância e divergências religiosas, pelo menos como um falso pretexto.
Na visão de Nietzsche, a nossa cultura é niilista por louvar falsos deuses. Não apenas religiosamente, mas também por formamos nossa base moral a partir da concepção de outras pessoas que pensaram por nós e que botaram a vida além do homem. Vivemos sob conceitos que são niilistas pois, por trás desses conceitos, o que é existe também é o vazio. E esses dois pontos, a ciência e as religiões, foram o que destruíram o mundo antes mesmo da Chii-chan e Yuu tentarem entender como funciona este mesmo mundo.
Vida & Morte no Vazio
Muitos diriam que, ao niilista, por não encontrar significado em nada que já foi definido, só resta esperar ou causar a própria morte. Ambas as opções são descartadas na obra de Tsukumizu. Ao longo da obra, Yuu e Chii-chan conseguem encontrar alguns pequenos prazeres. Seja em uma comida diferente que elas encontram, descobrir formas de criarem música, algumas poucas pessoas que aparecem e depois se vão e, claro, o fato delas terem uma à outra. Algumas vezes, além dos inevitáveis pensamentos sobre a morte, elas se depararam com essa possibilidade na prática. Quando isso acontece, elas não aceitam morrer ou ver alguém morrendo. Até mesmo quando uma Inteligência Artificial as obrigam a acabar com sua forma superficial de vida, elas se sentem tristes por terem feito isso. Quando o Kanazawa, ao perder seus mapas, que era a única coisa que dava sentido à vida dele, decide abandonar a esperança de viver, Chii-chan e Yuu não permitem que ele escolha a morte, e então a Yuu diz sua frase mais icônica:
Mesmo se pensarmos nos vestígios deixado pela antiga civilização, ainda é perceptível que eles tentaram sobreviver até o último momento. Criando meios de consumo alternativo, construindo máquinas autônomas para cuidar da vida para gerações posteriores, etc. Apesar de tudo, querer continuar vivendo é um instinto humano.
O Significado da Vida das Duas
Mesmo que existisse algo que explicasse o significado da vida, do mundo e tudo mais, Chii-chan e Yuu jamais teriam a chance de compreender isso. Na compreensão delas, independente de haver ou não significado, tudo é vazio. Elas têm algumas noções científicas e religiosas, mas elas também sabem que foram essas coisas que destruíram a humanidade. Até que, em algum ponto, elas mesmas começam a perder as poucas coisas que ainda as traziam algum conforto. Seu meio transporte, seus livros, sua arma, suas possibilidades. Ao chegarem ao nível superior mais alto, tudo que elas encontram é uma gigantesca plataforma coberta por neve. Um literal grande vazio, onde não é mais possível retornar e nem seguir em frente. A última parada das garotas.
Apesar dessa eminência da morte, as duas ainda conseguem achar que viver é incrível, mesmo que a jornada delas não tenha utilidade ou significado. Então, após brincarem na neve, as duas comem a última ração de batata, se aconchegam para dormir e deixam para o dia seguinte a decisão do que fazer para continuarem vivas.
Então, como será que o Nietzsche provavelmente interpretaria esses símbolos e explicaria o fato delas não estarem desesperadas (e sim, eu sei que imaginar o Nietzsche lendo mangá é maravilhoso)? Em seu livro "Assim Falou Zaratustra", Nietzsche nos mostra as transmutações pelas quais um espírito precisa passar para deixar os antigos valores para trás e criar novos, sair do niilismo negativo e chegar no niilismo ativo. Ela chama isso de "As Três Metamorfoses do Espírito". A primeira dessas três metamorfoses é representada pela figura de um camelo. Apesar de ser forte, o camelo é servil. Sempre carregando em suas costas os valores que lhes foram colocados, encontrando a felicidade apenas nos poucos momentos em que não está servindo voluntariamente. Ao camelo nunca passaria pela mente que os valores aprendidos poderiam ser diferentes.
A figura que representa a segunda metamorfose é o leão. Ele quer ser livre de alguma coisa, então começa a destruir os antigos valores que não lhe pertence, que não mais lhe convém. O leão tem a força pra quebrar os antigos valores, mas ainda precisa de algo para por no lugar desses valores.
E então, a metamorfose se conclui na figura de uma criança. Para Nietzsche, uma criança é livre por natureza. Ela é livre para criar seu próprio mundo e estipular seu próprio entendimento do que é bom ou mau, sem ser influenciada por outras pessoas. Ao se perder no mundo é preciso criar seu próprio mundo.
Nessa jornada em um mundo absurdo, onde por vezes elas se questionam o que a humanidade fez pra chegar nesse ponto, as meninas passaram pelas quatro formas de evolução do niilismo:
•Niilismo passivo: Uma reação contra todos os valores. Mas ainda se vive através desses valores. Ainda se busca entender esses valores.
•Niilismo ativo: A destruição desses valores. Quando se compreende totalmente que esses mesmos valores são vazios.
•Niilismo extremo: Quando se assume que não é necessário um Deus e nem uma verdade absoluta para vivermos.
•Niilismo completo: A afirmação da vida e daquilo que Nietzsche chama de vontade de potência. O indivíduo entende que não existe significado para nada, e mesmo assim, consegue conviver com isso, criando seu próprio sentido para a vida, a partir da sua própria vontade.
Tentando pensar principalmente o último volume sob a ótica do niilismo de Nietzsche, é como se a Chii-chan tivesse compreendido a morte de Deus, em um sentido não-literal. A Chii-chan mal se lembra do que são deuses. Pois qualquer sistema de valor que ela possua, não está centralizado em uma ordem divina. Mesmo que, no final a jornada a tenha levado a um grande nada, ela compreendeu que o mais importante pra ela é a Yuu. E todas as suas conclusões, seu valores e suas condutas, foram forjadas por elas mesmas. Sem uma crença e sem valores anteriores, elas abriram caminho para a criatividade aflorar e encontrar sentido mesmo no vazio, e assim continuar por mais quanto tempo for. Ao superarem o niilismo e transcenderem os limites do juízo de valor, as duas viraram aquilo que, em seu livro "Assim Falou Zaratustra", Nietzsche chama de Übermensch, o além-homem. E no fim, mesmo as ideias do próprio Nietzsche, seu Übermensch e qualquer outra coisa, também não significam nada pra elas. A verdadeira importância da falta de um grande significado para a jornada de Chito e Yuuri, está em tudo que elas descobriram e pensaram por conta própria. Para a vida e para as coisas, elas mesmas atribuíram os valores que quiseram. Isso é o que dá sentido a obra e que a faz ir mais longe do que qualquer ideia que possa ser associada à mesma. Esse é o motivo pelo qual me sinto tão atraído por esse final.
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Este texto é parte de uma trilogia de posts intitulada de Trilogia do pensamento. Clique no link para ler os outros dois posts.
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Texto escrito por: Maviael Nascimento - O próximo post do Animelancolia será lançado em breve, logo após esse vazio.
Imagem de capa: Henrique Neves (blog Casa dos Reviewers)
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