Recomendações de Releituras: Romeo x Juliet X Her Shim Cheong



Há muito, muito tempo atrás, em um lugar distante...

Há muito, muito tempo atrás, em um lugar distante...



... havia uma garota revolucionária chamada Julieta Capuleto.

... havia uma garota condenada, sem nome, sem sobrenome, sem uma história sobre ela.


 Quando olho para trás, nos tempos que remontam minha infância, não consigo lembrar de ter tido qualquer contato com algum vocábulo de teor progressista. Igualdade, autonomia, gênero, sexualidade, feminismo, etc. Só vim a conhecer e aprender o real significado sobre essas palavras já bem mais velho. Os seus significados e importâncias, não pareciam serem algo debatido amplamente ao ponto de chegar ao entendimento de uma criança do interior do Nordeste brasileiro nos anos 90. Isso não significa, no entanto, que obras mais antigas não tenham caráteres revolucionários ou questionadores. Mesmo as obras muito antigas. Mesmo aquelas de séculos atrás, ou mesmo aquelas cuja época de criação são desconhecidas.

 Quando as configuramos em suas épocas, as duas histórias originais que deram origem às obras que hoje serão aqui citadas, também têm suas formas de pensar que eram modernas para seus tempos. Romeu & Julieta (1951), de William Shakespeare, narra a história de um amor proibido que está condenada a acabar de maneira trágica. Julieta era uma garota com severas restrições de liberdade, o que a faz ser tão inocente e passional quanto haveria de ser. Já Romeu, um jovem melancólico e idealmente romântico, mesmo em sua ciência da possível tragédia eminente, escolheu viver esse amor de forma desmedida, como um peixe indo em direção ao anzol. E ainda assim, mesmo nesse conto onde os protagonistas parecem agir unicamente para esse amor, ainda pode se encontrar ideias à frente do seu tempo. Como o Frei Lourenço, uma figura religiosa que maquina para casar dois jovens amantes vivendo um amor proibido. Ou o Mercurio, que é o completo oposto do Romeu, e que busca viver sua vida de forma livre. Ambos, Frei Lourenço e Mercurio, apresentam formas de transgredir aquilo que nos é imposto, com inteligência ou coragem, mas jamais com complacência.

 O tradicional Conto de Shim Cheong é sobre uma filha completamente devota ao seu pai. Para que este possa recuperar a sua visão, e sabendo que o único jeito desse desejo se realizar seria conseguindo 300 sacos de arroz, Shim Cheong aceita se vender para ser usada em oferenda ao deus do mar. Então, a devoção da garota comove o deus do mar e também o imperador. Ao fim do conto, Shim Cheong torna-se imperatriz e reencontra seu pai. Mesmo se tratando da história de uma garota que se vendeu para salvar o pai, esse conto reflete alguns dos valores do xamanismo, confucionismo e budismo. Ela narra a atitude vital incessante de uma pessoa comum que perseverou para conseguir a almejada recompensa. Um conto repletos de valores temáticos. Existem diversas versões e romances sobre esse mesmo conto, mas a característica de devoção da protagonista é sempre mantida. Na versão norte-coreana, na qual o manhwa é inspirado, o conto é reinterpretado de forma a refletir elementos socialistas em um quadro tradicional, sendo, portanto, mais questionador que a versão sul-coreana.

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 E para quê todo esse papo sobre ideias progressistas e pensamentos sociais? Bem, as duas obras, as quais quero comentar hoje, são ambas releituras que pegam o que tem de ousado e de ideias datadas em suas obras originais e as remontam, repensam e revolucionam, as usando para falar de temas ainda mais fortes. O bom de uma releitura é que a nova versão pode tomar um posicionamento diferente em relação ao que está sendo contado. Até mesmo, ao ponto de questionar o rumo da história e a moral de seus personagens. É isso que é feito no anime Romeo x Juliet, de 2007, e ainda mais forte no manhwa escrito por Seri e ilustrado por Biwan, Geunyeoui Shim Cheong (그녀의 심청 / Her Shim Cheong / Her Tale of Shim Chong), de 2017.


Em Romeo x Juliet, assim como na obra original de Shakespeare, o romance toma forma em meio ao ódio mortal entre duas famílias, os Montecchio e os remanescentes dos Capuleto. Sim, os remanescentes. Essa é a primeira diferença que aparece no anime. Os Capuleto foram acusados de autoritarismo, para mais tarde serem exterminados pelas mãos dos Montecchio, em um golpe pela tomada do poder. Anos após esse genocídio, Romeu, filho do atual e autoritário grão-duque; e Julieta, a filha sobrevivente dos Capuleto, se conhecem e se apaixonam. Ao invés de uma rixa por poderes que fica em segundo plano na história, em Romeo x Juliet a guerra entre famílias envolve assassinatos, traições, conspirações, tirania e desigualdade social. Para viverem essa amor, eles precisam muito mais do que apenas lutar contra o ódio irracional entre suas famílias.

 Por se tratar de uma adaptação de um conto curto, Her Shim Cheong aparentemente não tem muito o que desconstruir... Errado! Justamente por ser baseado em um texto curto, a obra trata a lenda de Shim Cheong como uma história passada através das gerações para lembrar a importância do amor familiar. E então, ao contar como a história se desenrola no manhwa, percebemos como a realidade é muito mais cruel e  a parte realmente dura foi alterada através do tempo. A real grande diferença do manhwa pro conto original, é que esse primeiro se pergunta: "por quê?" Quais motivos realmente levariam alguém a se vender como se sua própria existência fosse menos importante que a de outra pessoa? Nesse tipo de conto, os protagonistas são simplesmente virtuosos, já que o importante é a lição. Mas uma pessoa comum poderia ser assim tão cheia de virtudes? É justamente por ser baseada em um conto que Her Shim Cheong pode detalhar todo um contexto histórico e religioso de cerceamento do valor das mulheres através de uma conto que glorifica mais o ato, ao invés da pessoa que o fez.

 

Histórias de pessoas destinadas a morrer.


 O mais incrível dessas duas obras, pra mim, é a maneira como o conhecimento comum das premissas das obras originais é usado. Elas não apenas vão além do que o material original propõe, como, na verdade, vão além do que elas mesmas propõe. Romeu & Julieta é a mais conhecida tragédia de amor do mundo. Então o anime usa essa expectativa da morte passional dos dois para criar uma história de amor que mudará o mundo em que a obra se passa. A Sombra da morte paira sobre Romeu e Julieta, mas a forma como eles agem é o que determina como essa história acabará. Em Romeo x Juliet, cada ação, cada traço de personalidade dos protagonistas, têm consequências. Diferente da obra original, nesse anime a Julieta foi treinada para vingar os Capuleto, se livrar da tirania dos Montecchio e retomar o poder que é dela por direito. A própria garota odeia ver desigualdade, então, mesmo antes de conhecer toda a história entre as famílias, Julieta já lutava pelo povo usando um disfarce de herói (assim mesmo, no masculino) com o pseudônimo de Redemoinho Vermelho. Na margem oposta, Romeu é alguém que sabe pouco e que, ao ir descobrindo a verdade, percebe o quão fraco ele mesmo é. E mesmo com toda essa história envolvendo amor e revolução, o anime vai ainda mais além de sua própria proposta. A revolução da Julieta, que inicialmente pensar-se-ia ser algo ligado ao empoderamento feminino da obra (que esta tem aos montes), visto que a personagem chega brevemente e enganosamente a demostrar sentir disforia de gênero devido a se achar fraca por ser mulher, na verdade, é algo muito pesado para ela, assim como seria pra qualquer pessoa. Toda a caracterização que é feita através disso é muito extensa e extremamente bem pensada.

 Um dos fatores que faz a versão norte-coreana do conto de Shim Cheong ser mais questionadora, é a adição de uma personagem, a esposa do primeiro-ministro Jang. Ao se sensibilizar com a história da garota devota, a nobre dama decide adotar a garota em troca dos 300 sacos de arroz. Assim a criança devota não precisaria se sacrificar. Mas, surpreendentemente, Shim Cheong renega a oferta. Essa é a lição desse conto, ao manter a sinceridade e a confiança aos marinheiros aos quais ela havia se vendido como sacrifício, Shim Cheong apresenta uma perspectiva de moralidade ao conto.

 Esse manhwa, no entanto, vai muito além disso, trazendo à luz para assuntos mais delicados que são ignorados nas principais versões do conto. Her Shim Cheong é, principalmente, um questionamento sobre o valor da mulher na sociedade ao longo das eras. Ao questionar os motivos que fariam alguém que já viveu sua vida em extrema pobreza se sacrificar por outro alguém, o manhwa também questiona o fato de ter que ser uma menina a ser sacrificada. E então, através de uma bela história com uma narrativa visual de brilhar os olhos, a obra retrata as dificuldades de ser mulher em uma era onde as mulheres não tinham direito à opinião e viviam unicamente para seus pais e maridos. Através desse ponto, segue-se uma caracterização interessantíssima para o casal de protagonistas. Afinal, uma história sobre sacrifício pode até ser bonita, mas, para quem?

 Os textos originais de Romeu & Julieta e O conto de Shim Cheong são narrativas cujas histórias se sobrepõe aos personagens. No romance do dramaturgo inglês, cabe aos protagonistas sucumbirem aos seus tristes destinos para que esse amor exista. O conto de Shim Cheong nada mais é do que uma parábola para transmitir uma lição sobre amor parental. Shim Cheong, coitada, sequer tem vontade para medir o valor de sua própria vida em comparação à visão de seu pai, e simplesmente ruma em direção ao sacrifício como se a essência vital dela se resumisse a isso. Ao criar uma releitura, esse anime e esse manhwa podem tomar novas abordagens em relação às personalidades de seus personagens e às consequências e valores dos seus atos. Principalmente a Shim Cheong, que, no conto coreano é como uma boneca sem vida, cujo a principal característica é ser devota ao pai. Her Shim Cheong é uma história muito complexa sobre valores, liberdade individual perante o coletivo e liberdade feminina. Em uma obra assim, é claro que os motivos que levam a Shim Cheong a aceitar ser usada como sacrifício são amplamente explorados. Toda a caracterização da Shim Cheong e todo o valor temático desse manhwa histórico, se baseiam em todo o entorno sobre esse sacrifício e o julgamento de valores que fazem das duas protagonistas. Mais que tudo, Her Shim Cheong é uma história que fala sobre liberdade feminina. E o manhwa faz isso de uma maneira tão forte que algumas vezes me fez sentir mal.


 Os dois casais que protagonizam essas histórias, são muito bem caracterizados. Todos eles são pessoas que não podem ficar indiferente ao que os outros pensam deles. Isso faz com que sejam falhos perante o julgamento, ou fracos perante à pressão. O peso que a Julieta carrega por ter que suportar as esperanças de todos, e o fardo do Romeu de ter que enfrentar o próprio pai, não apenas pela Julieta, são coisas que os impactam diretamente. Ainda mais, os seus atos e as coisas das quais eles não podem fugir, são coisas que envolvem muitas pessoas. É por isso que o amor deles vai ganhando peso o suficiente para mudar o mundo. E ainda assim, eles são apenas pessoas jovens. Eles erram ou se perdem muitas vezes. Em algumas passagens, eles agem egoistamente. E tudo isso tem valor e consequência. Nada nesse anime é em vão. De certa forma, a trama central de Her Shim Cheong é o oposto de uma revolução. Tudo que as pessoas esperam das protagonistas é que elas sejam perfeitas. Elas não precisam salvar pessoas oprimidas. Tudo que elas precisam fazer é não cometerem nenhum erro, jamais pisar fora da linha. Serem perfeitamente devotas. O que a obra faz é subverter a ideia moral do conto original sobre a devoção. Esse sentimento que é esperado delas, é como se fosse uma prisão da liberdade delas, onde a subjugação que elas precisam demostrar aos seus "superiores" é maior do que o valor individual delas mesmas. A trama se passa em uma era completamente patriarcal. Toda essa configuração faz com que Her Shim Cheong consiga abordar sobre liberdade feminina de uma forma que eu jamais havia visto antes, mais forte, mais brutal, mais poética. Seja pra fazer a revolução, ou para se sacrificar, tudo é significativo nos temas abordados nas obras.

 Mais que tudo, a construção humana dos personagens é impecável nessas duas obras. Muitas vezes enquanto assistia e lia, eu questionava até mesmo a índole dos personagens. Em Her Shim Cheong, as protagonistas estão sempre criando planos que prejudicam outras pessoas. Até chegar ao ponto em que realmente explica porque elas precisam fazer isso. No entanto, elas continuam sendo personagem com muitas nuances morais, ao invés de heroínas impecáveis. Já a Julieta e o Romeu muitas vezes botam seu amor à frente de questões que deveriam ser mais importantes. Eles são muitas vezes egoístas e agem por impulso. Mas, como sempre, tudo que acontece no anime faz os personagens e a trama crescerem. É uma obra em que o romance é quem trabalha em prol dos personagens, ao invés de ser o oposto.


 E isso é o que as tornam legitimas histórias de amor. Não de amores cegos, como em suas histórias originais, mas sim, de amores como são de verdade, difíceis de lidar e doloridos. Ao fim, ambas as obras passam ensinamentos importantes e necessários, trazendo uma ótica bem mais atual ao contexto das obras originais, sem sequer mudar as épocas em que as obras se passam. Todas essas lições estão ligadas ao amor, de certa forma. Em Her Shim Cheong é um relacionamento ainda mais proibido que em Romeo x Juliet. Historicamente, algumas religiões têm posicionamentos bem questionáveis sobre as mulheres, imagine então sobre duas mulheres vivendo juntas como um casal. São poucas as vezes em que a obra ressalta essa parte da sexualidade, mas subjetivamente, é algo muito importante e muito bem escrito na obra.

 E por fim, entre essas duas belíssimas obras, tem uma personagem que me encanta muito, que é a personagem cujo nome não foi revelado (essa questão dos nomes é extremamente importante na obra) e que é constantemente referida como madame (마님/manin, ou 장 승상 부인/Jang Seungsang Buin/esposa do primeiro-ministro Jang) pela Cheong, de Her Tale of Shim Cheong. Ela é a personagem que foi inserida depois na versão norte-coreana do conto, a esposa do primeiro-ministro Jang que decide adotar a Cheong. Nesse post citei diversas vezes as caracterizações dos personagens, e nesse aspecto, a Madame merece um destaque especial pelo primor com que isso é feito. A caracterização inteira dela parte da base de não conseguir aceitar a diferença de tratamento entre homens e mulheres. A partir disso, ela questiona a sociedade, a religião budista e tudo mais. E, no entanto, através de longas reflexões, ela entende muitas coisas e isso muda o seu caráter de uma forma que a torna uma personagem completamente única. Essa personagem é a síntese de tudo que quero dizer nesse post, sobre a importância de releituras de histórias clássicas.



 Gostaria de ficar comentando bem mais sobre essas duas obras incríveis. Mas como optei por evitar spoilers significativos, acho melhor parar por aqui. Sinceramente, esse texto não descreve nem 10% do quão boas e bem contadas são essas duas histórias. Ainda teria muito o que ser falado sobre ambientação, simbolismos visuais e várias outras coisas. Então, deixo aqui minhas recomendações a Romeo x Juliet e Her Shim Cheong. O poder do amor, o poder da luta.





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 Este texto é parte de uma trilogia de posts intitulada de Trilogia do pensamento. Clique no link para ler os outros dois posts.

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Texto escrito por: Maviael Nascimento - ainda temos um ao outro pra sonhar.

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