Yuusha de Aru da Vida Real

 "No ano de 2015, um vírus assolou a humanidade, sendo responsável por ceifar milhões de vidas. Em desespero, as pessoas foram obrigadas a se manterem isoladas. Diversos tipos de traumas manifestaran-se e o mundo tornara-se um caos."

 Essa foi a mentira espalhada pela Taisha, com o objetivo de esconder uma verdade ainda mais aterrorizante: a de que a humanidade seria expurgada através da existência dos monstros brancos deformados conhecidos como Vertexes. Manipulando a história do mundo e censurando registros, a Taisha conseguiu criar uma realidade ilusória . Assim, a sociedade pôde se desenvolver longe do desespero de saber a quantidade de vidas que foram sacrificadas para alcançar esse breve momento de falsa paz.

Registro da heroína - 01 setembro de 300 ED

Registro de xxxxxxl xxxxxxxxx 

(censurado)

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 Passados apenas alguns anos desde o agora distante 2014, ano de lançamento de Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru, a vida real foi verdadeiramente assolada por uma verdade que provou que muitos elementos na história dessa franquia carregam consigo um doloroso senso de realidade. Agora, que vivemos os primeiros momentos após dois longos anos de intenso isolamento social, causado pelo COVID-19, podemos olhar para trás e perceber que, quando se trata dessa obra, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.



 Primeiro, o desespero; depois, a dor; e enfim, a memória coletiva começa a mostrar sinais de esquecimento sobre os acontecimentos. Tratando-se de uma escala menor em certos aspectos e bem maiores em outros, muito do que foi retratado na franquia Yuusha de Aru tornou-se verdadeiro em nosso mundo, onde nenhuma pessoa pode usar uma armadura banhada em poder divino. No entanto, apesar disso, Yuusha de Aru sempre tratou de passar lições poderosas que não podem ser efêmeras. Por isso, essa estrutura narrativa quase profética pode ajudar aqueles que querem aprender a não cometerem os mesmos erros e encerrar o ciclo de enganos que se repete vez após vez.

 Em Nogi Wakaba wa Yuusha de Aru, o início cronológico da história, tudo se inicia com a invasão dos seres indescritíveis chamados de Vertex. Uma existência que caiu do céu e cruelmente matou bilhões de pessoas, isolando todos os sobreviventes em algumas poucas regiões do Japão. Além da sede de vingança e da vontade de viver, essa invasão também desencadeou um trauma específico em muitos dos sobreviventes. A memória daquela invasão fez com que algumas pessoas desenvolvessem uranofobia, o medo mórbido do céu.

 O terror cósmico sobrenatural da novel de NoWaYu não encontra equivalência com algo que exista na vida real. No entanto, em outra escala, o medo do COVID-19 também aumentou drasticamente a incidência de casos de agorafobia, um distúrbio anteriormente pouco conhecido. A agorafobia é caracterizada pelo medo de permanecer em lugares onde não se tenha o sentimento de controle ou segurança. Com a adição do medo da contaminação, o período de isolamento deu um novo sentido a essa ansiedade. Era normal ficar temeroso ao sair para fora de casa. Para alguns, esse receio transformou-se em algo mais profundo, desencadeando formas de transtornos de ansiedade, como a agorafobia.

 E, no entanto, ao avançar a história em 300 anos, toda a memória da invasão Vertex foi inteiramente esquecida e, posteriormente, apagada da história pelas mãos da Taisha e encoberta pela mentira de que foi um vírus que dizimou quase toda a humanidade. Mesmo em um contexto tão absurdo, nossa atual tendência ao esquecimento em relação a doenças que causaram grandes perdas no mundo já mostra o quão plausível é tal mentira ser acreditada no universo de Yuusha de Aru.

 Nem é necessário voltar séculos atrás. Uma epidemia recente que me vem rapidamente à mente sobre esse assunto é o HIV, que causou grande pânico durante a década de 80 e parte da década de 90. Celebridades definhando em frente das câmeras, muitas mortes, muita desinformação, muito medo do desconhecido. Casos notórios evidenciam como a falta de informação pode causar transtornos psicológicos, como quando o jogador profissional de basquete Magic Johnson sofreu um corte em quadra, gerando pavor de contaminação entre jogadores e o público, que não se aproximaram do atleta ferido. Mesmo algo tão midiático como o vírus do HIV, invariavelmente, foi esquecido, levando a um aumento nos casos de contaminação ao longo dos anos. Conscientizar as pessoas repetidas vezes foi necessário, e assim continuará, pois a memória humana coletiva, aparentemente, esquece épocas traumáticas antes mesmo de mudar as gerações.

 

 Com o COVID, que é uma pandemia que sequer chegou ao seu final completo enquanto escrevo este texto, não tem sido diferente. Já parece haver uma tendência geral ao esquecimento. Eu mesmo fico surpreso com o quão distante o terror do COVID parece para mim atualmente. E, é claro, essa surrealidade com que vemos o passado é um perigo na vida real, assim como é em Yuusha de Aru. Em seu livro "Um Tempo Para Não Esquecer", a pneumologista Margareth Dalcomo aponta diversos problemas nessa amnésia coletiva. Ela destaca a compreensão de que uma época marcada por luto queira ser esquecida, mas que essa mesma memória é fundamental e não deve ser negligenciada, principalmente nos âmbitos políticos, científicos e de saúde pública. Se tivéssemos uma memória melhor de todas as epidemias que ocorreram ao longo da história humana, muitas mortes poderiam ter sido evitadas.

 Além dos Vertexes, a Taisha também tratou de apagar a heroína Chikage Koori da história. Depois de perder a sanidade, resultado tanto do uso prolongado do trunfo quanto do seu já frágil estado mental; a existência de Chikage foi eliminada dos registros históricos. Nos tempos atuais, conforme o cânone da obra, nem mesmo as novas heroínas têm conhecimento de quem foi Chikage.

 Esse fato na ficção de Yuusha de Aru chega a ser doloroso pela precisão com que reflete a realidade. Apenas ao decorrer da minha vida é que fui descobrindo que muito do que aprendia na escola não era completamente verídico, ou eram totalmente inventados. Uma descoberta que me fez questionar muitas coisas foi quando soube que o escritor Machado de Assis era mestiço. Em meus livros de história nos meus primeiros anos de escola, o maior escritor negro da história sempre foi ilustrado como um homem branco.

 A vida da Chikage reflete algo tão comum quanto o embranquecimento de Machado de Assis: pessoas que são completamente apagadas da história por estarem à margem de um padrão desejado por aqueles que decidem o que será contado ao longo dos tempos.

 Existe uma pessoa que, quando conheci sua história de vida, logo me recordou da Chikage, por ter sido mostrada na mídia, adorada pelo povo, e mesmo assim ter sofrido perseguição e não ter o reconhecimento devido. No Nordeste brasileiro, onde nasci, praticamente qualquer pessoa sabe quem foi o Padre Cícero e o motivo que o fez se tornar um santo popular (a beatificação dele ainda se encontra em estudo pela Igreja Católica). Em 1889, o Padre Cícero foi considerado milagreiro depois de ministrar a uma beata uma hóstia que sangrou. No entanto, o nome dessa beata foi renegado nos livros escolares que abordam a história de Juazeiro do Norte, matéria presente nas escolas do Crato, cidade do interior cearense onde viveram o padre e a beata.

 O nome dessa mulher era Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo. Quando a notícia da hóstia que sangra na boca da beata Maria chegou indiretamente aos ouvidos do Papa da época, Leão XVIII, a ordem que veio de cima era de esconder esse milagre. Durante os procedimentos de verificação da veracidade do acontecimento, a hóstia da beata sangrou novamente, dessa vez ministrada por outro padre. Os exames de saúde de Maria também foram todos positivos, eliminando a possibilidade de sangramento devido a problemas bucais ou outras doenças, como a tuberculose. Em um processo episcopal, essa ausência de outras explicações se qualifica como um milagre. No entanto, o bispo do Ceará na época, Dom Joaquim José Vieira, pressionado pela alta cúpula da Igreja Europeia, não aceitou o relatório, alegando que os padres que constataram a validade da checagem do milagre foram ludibriados.

 No interior do Nordeste brasileiro, uma mulher preta e analfabeta provendo um milagre; era algo que a Igreja Romana da época, século XIX, não desejava como imagem de uma santa. Na segunda comissão de averiguação, o padre enviado dessa vez tinha a intenção de provar a falsidade do ocorrido a qualquer custo. Relatos da época indicam que, dessa vez, ela havia sido presa e torturada. Depois de muitos incidentes, foi mandado queimar qualquer documento oficial que mencionasse a existência de Maria Magdalena, resultando em um apagamento histórico. Por fim, ela não se tornou santa, sofreu execração pública, foi exilada em uma casa de caridade e foi esquecida com o tempo. O Padre Cícero também perdeu seus direitos de sacerdócio em razão de nunca ter negado a verdade sobre a beata, que também era uma amiga próxima dele.

 Essa parte da vida de Maria Magdalena foi muito documentada na mídia da época, então sua existência nunca pode ser totalmente apagada, mesmo existindo poucos documentos oficiais sobre ela. No entanto, é impressionante como a narrativa dela se assemelha com a Chikage. Uma mulher louvada e adorada por um breve momento, e logo depois renegada e apagada. E tudo porque não se encaixavam no que era esperado para um figura monumental, uma santa, no caso da Maria, e uma heroína, na ficção de Yuusha de Aru. Diferente da Chikage, a história de Maria ainda pode ser conhecida, mas ela não é lembrada e reverenciada como o Padre Cícero, que até hoje é uma figura de importância única no Ceará e no catolicismo brasileiro. No entanto, várias outras Marias e Chikages devem ter feito história antes de caírem no anonimato forçado. Pessoas importantes que foram propositalmente anuladas na história.

 Quando os eventos de NoWaYu chegam ao fim, Wakaba discute abertamente com Hinata sobre a importância de adicionar recursos extras ao Yuusha System para preservar a saúde mental das heroínas do futuro. Trezentos anos depois, a Taisha foi mais uma vez corrompida, escondendo segredos das atuais heroínas e implementado ao sistema mais funções ligadas à força, ao invés da estabilidade mental, como era intencionado por Wakaba e Hinata.

 O resultado não poderia ser outro. Dessa vez, as heroínas da geração de Yuuna Yuuki foram expostas a tantas situações de extremo estresse psicológico que, por vezes, estiveram à beira de perder a sanidade. Isso quase levou a Taisha ser destruída pelas mãos das próprias heroínas, além de ter levado ao enfraquecimento da vitalidade de Shinju-sama, o que, por sua vez, resultou no confronto final que quase levou à extinção definitiva da humanidade.

 Durante a leitura do extenso material de Yuusha de Aru, você pode perceber diversas referências a livros sobre pandemias e metáforas relacionadas a elas, como o livro 'La Peste', que aparece sendo lido por Yuuna Lilienthal no capítulo "Every man is the architect of his own fortune", de Fuyou Yuuna wa Yuusha de Nai. Uma história do filósofo Albert Camus que narra acontecimentos semelhantes aos de Yuusha de Aru, ressaltando a importância da solidariedade e da memória.


 Não obstante, todas as partes da franquia são repletas de momentos que relatam de maneira fantasiosa todo tipo de ação que o ser humano é capaz quando submetido a situações de forte impacto mental. Isso é percebido principalmente em Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru, quando todas as mentiras da Taisha vão sendo descobertas, uma a uma. Quando Fuu descobre que sua irmã mais nova, Itsuki, não iria mais recuperar a voz, ela tenta destruir a Taisha. Em uma situação em que as vidas de todas suas amigas estavam ameaçadas, Karin entra em desespero, acessando diversas vezes o Mankai e, posteriormente, sofrendo diversas perdas de funções corporais por meio do Sange.




 E a maior de todas as situações, que é debatida mesmo entre os fãs da série, é quando Mimori Tougou decide quebrar a barreira de Shinju-sama e permitir que os Vertex destruam a árvore sagrada, que é o corpo da aglomeração de deuses terrestres que compõe Shinju-sama. Os atos extremos de Mimori, que poderiam ter destruído o mundo, ocorreram logo após ela descobrir que as heroínas eram apenas sacrifícios para os deuses, e que a elas não era dado sequer o direito de não lutar. Quanto mais elas lutassem, mais funções corporais seriam dadas em troca de seus poderes, até que elas mesmas não tivessem mais nada, e então seriam adoradas como divindades.

 As intenções para o futuro de Wakaba e Hinata, assim como os atos políticos da Taisha, foram todos esquecidos ao longo dos séculos. Isso causou mais e mais perdas no futuro. De certa forma, essa narrativa está de acordo com o que a Doutora Margareth diz em seu livro, que foi citado anteriormente, sobre por que é importante manter a memória política e social em tempos como os que vivemos durante a pandemia e mesmo agora.

 Por sua vez, isso se alinha com a mensagem principal de Yuusha de Aru. Uma lição realmente corriqueira e repetida, mas que continuamos ignorando até o mundo ficar com as condições políticas e climáticas desastrosas que estão atualmente. O presente em Yuusha de Aru é representado na metáfora do conceito do Bastão Passado (託されたバトン, Takusareta Baton). Sobre o que você faz agora reflete constantemente no futuro. Semear boas atitudes e cuidar das pessoas e do mundo, evidentemente, são as únicas coisas que podem garantir que haja um futuro em meio tantas mudanças climáticas e conflitos recentes.

 Mesmo sabendo que a Taisha provavelmente iria se corromper novamente no futuro, a liderança de Wakaba e Hinata fez coisas para garantir melhores condições às heroínas das próximas gerações. As fadas que garantiram a instabilidade temporária em Washio Sumi wa Yuusha de Aru, e o corvo que salvou Yuuna Yuuki da maldição dos deuses celestiais em Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru, foram ambos implementados pelas heroínas do passado, enquanto esse passado ainda era presente. Durante o confronto final contra a personificação dos deuses celestiais, foram os espíritos de todas as heroínas que viviam em Shinju-sama que ajudaram Mimori a escolher o caminho da humanidade. No fim, a vitória foi obtida com a combinação do passado e do presente, formando um bastão de coragem para as pessoas que estarão ainda mais no futuro e que terão a missão de restaurar um mundo destruído.

 Essa franquia é repleta de tragédias, mas sua mensagem é definitiva, positiva e poderosa. Se toda a parte trágica se mostrou dolorosamente relacionável com nossa história atual, então por que seria diferente com a parte positiva da obra? Essa ideia da união do presente com o futuro é extensamente e brilhantemente trabalhada ao decorrer da trama, culminando em um dos finais mais belos e geniais que já vi na vida em Yuusha no Shou. Nenhum de nós dispõe de armaduras banhadas com poderes sagrados, mas cada pessoa pode ser herói de alguma forma. Não esquecendo do passado nem do futuro, agora, no presente.



 

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Texto escrito por: Maviael Nascimento, censurado pela Taisha.

Edição de imagem: Henrique Neves (Casa dos Reviewers)

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