Paradise Kiss Contra a tradição... da contradição

 Desde sua formação escolar em uma renomada instituição de moda (Osaka Mode Gakuen), até seus demais alvos de estudos, como o movimento punk e rock punk e progressista, quase tudo que envolve a Ai Yazawa e seus trabalhos no mundo dos mangás e animes, sempre está cercado de ideias fortes e vanguardistas. Em uma era em que os rankings de vendas de mangás eram dominados por obras voltadas para o público masculino, a autora despontou no horizonte com sua obra-prima NANA, alcançando o topo da lista por várias vezes, antes mesmo da obra ser adaptada em qualquer outra mídia. Isso está plenamente ligado à forma com que a Ai aborda temas fortes e delicados. Enquanto todos esses shounens e seinens conseguiam manter sua popularidade com o espaço que já haviam conquistado dentro da cultura otaku através de suas fórmulas e quebra das mesmas, a Ai Yazawa, de uma maneira que a própria indústria não esperava, conquistava mais e mais pessoas que não eram necessariamente otaku, mas que buscavam certas representações dentro de uma vertente cultural tão intimamente ligada à sua nação. Isso verteu a visão do mercado para muito além do esperado e abriu portas para que muitos outros shoujos, joseis e obras com temáticas mais realista dentro das "demografias para meninos" também pudessem almejar e, respectivamente, alcançar os rankings de mangás mais vendidos. O marco que foi NANA teve importância direta não apenas para obras como Nodame Cantabile e outros joseis que se destacaram positivamente depois do mangá da Ai, como também foi igualmente importante para mangás como Death Note, que era um shounen, porém, com um apelo direto ao público que Ai Yazawa agregara à cultura otaku. Além do fenômeno editorial, a importância e pioneirismo de Ai Yazawa seguem marcados na história dos mangás e animes até os dias de hoje

 Entre os temas mais comumente abordados pela autora, o movimento punk e a moda são aqueles que, ao longo do desenvolvimento da sociedade, se influenciaram tanto um ao outro, que ambos quase se confundem. O movimento punk, enquanto contracultura, tem ideais baseados em anarquismo e revolução. Para a moda também são atribuídas as mesmas características, de trazer o novo, o atual. São dois movimentos constantemente associados como formas de combater a ideologia conservadora e o sistema socioeconômico de muitos países. Aqui mesmo, no Brasil, o punk surgiu como uma forma de combate à repressão e censura do regime militar, restos da ditadura.

 Ao abordar temas assim em obras como NANA e Paradise Kiss, seria de se pensar que a fórmula narrativa da Ai Yazawa consiste em abordar temas polêmicos e defender o lado que está contra qualquer ideia baseada em moralismo. De certa forma, isso é verdade, mesmo em Paradise Kiss, mas passa longe de ser algo tão simples. A partir do momento em que Ai Yazawa alcançou um status que lhe conferiu mais independência e controle de suas histórias, foi quando ela pôde criar aquilo que vejo como a sua "naturalidade temática perfeita". O approach narrativo de abordar assuntos de um jeito tão orgânico que simplesmente entram nos leitores sem que esses mesmos percebam isso.

 Embora eu considere NANA como a epítome do talento avassalador da Ai Yazawa, eu entendo que foi em Paradise Kiss que a autora alcançou o seu discurso definitivo. Não à toa, penso em Paradise Kiss como sua carta aberta de amor destinada à moda, à arte e aos mangás; três grandes paixões da autora. Assim sendo, para esse post deixarei de lado minha persona que tem NANA como obra que mais influênciou minha escrita e maneira de pensar, e tentarei conduzir você, leitor(a), para uma jornada que consiste em destrinchar a narrativa de Paradise Kiss na tentativa de entender Ai Yazawa.


Animelancolia, em uma homenagem à Ai Yazawa, apresenta uma nova série:


Ai Yazawa The Perfect Vision

- Capítulo 1 -  


 Ai Yazawa é uma autora tão intensa que, em Paradise Kiss, ela só precisa das primeiras duas páginas do mangá para apresentar os principais elementos presentes na narrativa e que fazem a obra ser o que é. 

 Na primeira página, vemos uma breve narração descrevendo o ateliê em que trabalham o pessoal da grife ParaKiss. Nenhuma pessoa aparece nessa página. Um cenário vazio. Passando para a cena seguinte a essa, encontramos diretamente com a dona da narração da descrição anterior. Uma garota jovem com uniforme do Ensino Médio. Por alguma razão desconhecida, todas as pessoas ao seu redor parecem a incomodar profundamente.


Stage 1


 Muito além de apresentar a heroína da história, essas duas páginas carregam muitas informações relevantes pra se entender Paradise Kiss profundamente. Logo de início, a obra mostra ser uma narrativa em primeira pessoa, além de trazer à tona o tema central da obra, a moda. Em seguida, Ai Yazawa nos brinda com essa que pode ter sido a maior ilusão que ela já criou. Já em sua primeira aparição, a Yukari, protagonista de Paradise Kiss, parece trazer dentro de si uma revolta com o estilo de vida das pessoas, que estão abarrotando a cidade em pleno dia da semana. Como já fomos apresentado ao tema moda, que é um movimento cuja fama é precedida pelo seu caráter transgressor, é realmente de se imaginar que essa aparente revolta da Yukari esteja associada com uma personalidade rebelde e inquieta, ideal para uma heroína de uma obra sobre moda. Ledo engano. 

 Seria bem mais fácil abordar certos temas através de uma protagonista que se sente incomodada com estilo de vida conservador das pessoas. Incômodo esse que a Yukari sempre demostra quando se trata da pressão que ela sente sobre seu futuro e na difícil relação que ela tem com a mãe dela, que é obstinada que a filha não falhe. Bem, por mais fácil que fosse ter uma heroína revoltosa e cheia de princípios, isso não seria o bastante aqui. Não em Paradise Kiss, não com a Ai Yazawa escrevendo. Ainda no primeiro capítulo é bem fácil perceber como a Yukari é uma... bem, ela é uma hipócrita. 

 Creio que agora seja o momento certo pra falar sobre nossa protagonista e narradora dessa história. Yukari Hayasaka, 18 anos, estudante do terceiro ano do Ensino Médio. Mesmo em seu último ano de ensino escolar antes de ter que escolher seu futuro, Yukari se encontra perdida. Os pais da Yukari pensam que apenas aqueles que frequentam uma boa faculdade são pessoas decentes. Ela é constantemente pressionada a sempre alcançar grandes notas para ingressar em alguma prestigiosa instituição. Esse tipo de situação, somada com a rigorosa criação da mãe, é o que faz a Yukari se sentir incomodada com as pessoas ao seu redor.

 O que torna Yukari em hipócrita é a divergência entre seus atos e sua narração em primeira pessoa. Embora ela narre constantemente que odeia o estilo de vida padrão que sua mãe deseja para ela, isso não condiz com as coisas que ela faz. Voltando à segunda cena do começo da história, o que realmente causa incômodo profundo na Yukari é que tantas pessoas estejam se divertindo em um dia que nem sequer é fim de semana. Isso apenas a irrita por fazê-la se sentir miserável. Então, isso torna a estrutura conservadora que ela foi criada em objeto de comodidade para ela, fazendo sua revolta ser contraditória. Dessa forma, Yukari pode simplesmente esconder suas próprias falhas e falta de objetivo, utilizando o conservadorismo alheio como uma justificativa sólida para sua apatia, renegando sua própria culpa. Mas, ao mostrar todos os seus pensamentos, podemos ver como intimamente ela está muito mais adaptada aquilo que lhe incomoda do que ao que ela realmente deseja. Mesmo o colega que a Yukari tem interesse amoroso, é um sentimento completamente superficial, baseado em aparência. Alguém que ela idealiza como um homem perfeito. Afinal, apenas um homem perfeito poderia suprir sua maior necessidade, que é esconder seus medos e fraquezas. As pessoas incomodam Yukari, mas não por suas vidas supostamente conservadoras, e sim porque elas a fazem ter que encarar a si mesma.

 Quando ela enfim encontra pessoas que levam uma vida completamente diferente do estilo de vida que ela conhece e constantemente diz odiar, a reação da Yukari é de puro preconceito e julgamento.

 Enquanto estrutura narrativa, Paradise Kiss ter uma protagonista com tantos problemas de personalidade é algo realmente desafiador. No entanto, para seu discurso antropológico sobre moda e estruturas sociais conservadoras, a Yukari carrega o ponto de vista mais subjetivo possível. Inicialmente ela não está posicionada em nenhum dos lados. Mesmo que seus pensamentos carreguem o sentimento de revolta com o que está estabelecido para ela, suas atitudes não seguem a mesma linha. Isso faz com que ela também não esteja contra algum dos lados. A visão dela é totalmente ampla. E como estamos falando de uma narrativa em primeira pessoa, isso faz com que a visão do espectador também se torne panorâmica. Os principais temas que estão sendo discursados por Ai em Paradise Kiss são naturais, pois eles não estão constantemente aplicados diretamente ao texto ou ao subtexto, ao invés, eles são partes predominantes da caracterização e desenvolvimento de personagem da Yukari Hayasaka, uma das personagens mais bem escritas que Ai Yazawa já criou.


Stage 2


 Embora Yukari seja apaixonada por um homem idealizado, amores perfeitos são quase inexistentes nas obras de Ai Yazawa. Em Paradise Kiss, novamente a autora usa o romance como uma importante peça pra desenvolver os temas da obra. A seguir, vamos tentar entender a profundidade dessa ideia em Paradise Kiss e como ela complementa os elementos citados anteriormente.



 Jouji Koizumi (George) é o herói dessa história, sendo o exato oposto da idealização da Yukari de um homem perfeito. Apesar de ser muito charmoso, o George possui uma personalidade distorcida. É uma pessoa manipuladora e abusiva. Mas, de alguma forma, a Ai Yazawa sempre consegue fazer com que a lógica por trás das falas dele seja imbatível. Isso faz com que a Yukari e o leitor possam entender constantemente a incoerência dos atos da protagonista.

 Por outro lado, o próprio George também tem suas incoerências. Por desejar que ela se torne uma mulher independente, ele constantemente aponta o hábito da Yukari de culpar os fatores externos pelos seus próprios erros, mas isso é baseado nos ideais de independência feminina dele. E para esse objetivo, ele é bastante manipulador.

 Além disso, o relacionamento conturbado deles está repleto de outros sentimentos negativos. Alguém cheio de talentos como o George faz uma pessoa perdida como a Yukari se sentir ainda mais desesperada. Como sempre acontece nas histórias da Ai Yazawa, o romance é sempre algo muito mais complexo do que simplesmente amor. E torna-se necessário que o leitor reflita por si mesmo, pois a autora geralmente apresenta mais questionamentos do que conclusões.


Stage 3


 E então, novamente, ao acompanharmos o desenvolvimento desse relacionamento conturbado, podemos ver como isso se interliga e complementa os elementos narrativos citados anteriormente. Como já foi estipulado, a Yukari se sente confortável em viver baixo as regras da mãe dela, já que assim ela pode usar isso como justificativa de seus fracassos. No entanto, como esse é o tipo de mulher que o George mais odeia, ela tenta se tornar independente. Isso, por sua vez, se liga diretamente ao tema do conservadorismo. Porque o jeito de ambos está envolto nas maneiras como ambos foram criados, mas, mesmo isso não justifica seus erros.

 O uso verdadeiro da palavra "conservadorismo" nesse texto é pelo seu significado de aversão às mudanças. Algo que se caracteriza muito forte na Yasuko, mãe da Yukari. Por ter sido criada dessa forma, pra se tornar o que a Yasuko considera como uma pessoa de sucesso, foi que a personalidade da Yukari se tornou competitiva e limitada. Uma criação sem espaço para a cultivação das individualidades e da criatividade da Yukari. E então, tanto a insatisfação quanto o conformismo que ela sente por esse tipo de vida, ficam explicados na caracterização da personagem, novamente destacando a naturalidade com que Ai Yazawa aborda o tema.

 Por outro lado, George foi criado de maneira livre. Mas, durante toda sua vida teve que lidar com as constantes reclamações da sua mãe, a Yukino, e ouvir diversas vezes que ele não deveria ter nascido. O comportamento da Yukino é muito semelhante ao da Yukari. Sempre culpando todas as coisas pelos próprios erros e se isentando em seu processo de julgamento. Baseado na personalidade da mãe, o George manipula os sentimentos da Yukari, para que ela não se torne como a Yukino. De certa forma, tanto na criação rígida da Yukari quanto na criação liberal do George, existe algo que os limitou, seja pela ausência de liberdade ou pela falta de diálogo. A caracterização do George, como uma pessoa que é por muitas vezes perversa, deixa claro que Ai Yazawa não está defendendo alguma forma de liberalismo acima do conservadorismo. A naturalidade temática da Ai Yazawa se concretiza também pela forma com que ela aborda todos os pontos de uma mesma questão sem atacar ou defender algum dos lados, apenas mostrando como as coisas podem ser, ampliando as perspectivas e fazendo o leitor pensar por si mesmo no que é certo ou errado dentro dessa narrativa.



Stage 4


 Então, se não se trata da defesa de um lado, qual o fio que costura todos os temas e elementos narrativos que foram citados até agora? Afinal, se é um discurso passado naturalmente com intenção de nos fazer pensar, se faz necessário que exista algo pra conectar e desenvolver todos esses temas até o limite. Esse algo existe, e é o subtexto que está muito próximo ao tema da obra. Paradise Kiss, enquanto uma obra sobre moda, está constantemente desenvolvendo a temática sobre a busca por identidade.

 Para muitas pessoas moda pode simplesmente ser um sinônimo de roupas. Para outras pode ser uma forma de confrontar o status quo do que está estabelecido como norma, seja social ou puramente de beleza. Mas, em Paradise Kiss é mostrado o que a moda realmente é, além disso tudo. Se vestir pode ser algo comum ou até mesmo uma forma de ostentar valor, mas, há muitas pessoas que precisam disso como uma forma de adaptar o seu exterior para aquilo que se é por dentro.

 Mais que um movimento de revolta, a moda é um meio essencial de expressão humana. Não é algo restrito a roupas. Moda é um jeito de mostrar diferenciação, atitude e estilo. É a forma de encontrarmos nossa própria essência dentro de nós mesmos e externarmos isso, unindo coração e corpo. Agora, então, tentaremos entender como isso foi passado em Paradise Kiss.

 Embora eu tenha usado a palavra "hipócrita" algumas vezes nesse texto, a Yukari está mais pra uma pessoa perdida. No começo do mangá ela está em um ponto crucial que irá determinar seu futuro. Mesmo assim ela não faz ideia do que fazer da vida. Não porquê ela está confusa, mas sim porque ela jamais teve um sonho próprio. A Yasuko criou sua filha já tendo em mente o futuro da mesma. Por isso ela não tinha espaço pra aflorar alguma individualidade e identidade própria, e é por isso que se pode caracterizar tal situação como conservadorismo, sem precisar dizer que é algo errado ou certo. Então, quando ela se envolveu com George, mesmo que por motivos escusos, Yukari começou a batalhar por sua própria independência, algo que defina a identidade e o valor dela enquanto pessoa. E esse lugar que pertence somente a ela, foi encontrado através da moda.

 Pensando no final da obra, quando a Yukari se torna uma pessoa realizada e feliz consigo mesma, ela se desfez de sua personalidade controversa, mas ela não necessariamente rompeu os estigmas idealizados pela mãe. Ela se sente feliz que a mãe se orgulhe dela. Ela noivou com o homem que ela idealizava, com quem ela tem um relacionamento honesto e saudável. Yukari, sim, rompeu uma tradição. Quando ela encontrou seus próprios objetivos, Yukari rompeu a tradição de suas próprias contradições internas e conseguiu encontrar sua verdadeira identidade. Pois essa não é uma obra que tem como objetivo fazer o espectador se tornar contra algo. Paradise Kiss é um convite para tentarmos entender a importância de poder expressar nossas individualidades.

  Em uma das últimas cenas, vemos Yukari em uma conversa franca com seu noivo, o Hiroyuki. Ela fala abertamente sobre a importância do George pra ela, enquanto Hiroyuki declara calmamente que nunca irá superar o que sente pela Miwako. Um relacionamento completamente diferente daquele que ela tinha com o George. Essa cena em si é a síntese do porquê dos protagonistas não terem ficado juntos no final. Se trata da conclusão absoluta de todos os temas que cercavam a Yukari. Ao romper seu relacionamento, Yukari alcançou sua própria independência e, com seus próprios pés, sem precisar culpar o George ou o mundo por tudo, alcançou seu próprio paraíso.


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Texto escrito por: Maviael Nascimento - Moda está em tudo que é visual e transmite informação. O conceito visual desse post é moda. O Animelancolia é moda!

Edição de imagens: Henrique Neves (site Casa dos Reviewers)

Conheça a série completa sobre Ai Yazawa: Ai Yazawa The Perfect Vision

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